Crianças Xhosa mostram o que é ubuntu: “eu sou porque nós somos”.
PROJETO DE ACESSIBILIDADE DE NEGROS E NEGRAS À FORMAÇÃO ANALÍTICA NO INSTITUTO DE PSICANÁLISE DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE
A pandemia invadiu nossas vidas, nosso trabalho, nossa rotina, nosso jeito de viver singular e estabeleceu regras universais de convivência, nos empurrando ao isolamento social e nos obrigando a rever quase tudo que tínhamos como certo e organizado. E quando o confinamento se estendeu de semanas para meses, tirando a previsibilidade de voltar como éramos antes, tivemos que nos acertar com alguns fantasmas que não queríamos enfrentar. O vírus que assustou o mundo nos colocou para pensar a vida como iguais, ninguém era diferente diante da calamidade. Foi terrível, mas importante. Pobre e rico, preto ou branco, teriam o mesmo destino no encontro com o covid 19. O mundo nunca esteve tão igual, pelo menos nisso. Nós, psicanalistas, mesmo privilegiados pela ferramenta online nos consultórios, também precisamos enfrentar este momento de outra forma, nos conectando, nos deixando afetar, nos humanizando. Começamos a conversar mais dentro, fora e entre instituições de um modo nunca realizado antes. Os assuntos do mundo vieram até nós mais facilmente. Nos abrimos na pandemia e isto foi extraordinário. E isto mudou muitos psicanalistas e muitas instituições.
Desde o dia 18 de julho de 2020, quando ocorreu o evento “Racismo: o demoníaco estrangeiro que nos habita” na Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, nossa instituição viu-se envolta em repercussões intensas e irrefreáveis sobre o racismo institucional que permeia as sociedades psicanalíticas do Brasil e certamente do mundo todo. A fala do nosso negro único, Ignácio Paim Filho, tocou fundo na alma de todos os que o assistiram. Era um grito necessário, desconfortante, desacomodador. Ignácio convocou todos a pensar porque praticamente não existem psicanalistas negros no Brasil, mais especificamente nos Institutos de Psicanálise ligados à IPA, bem como deve ser pequeno o número de pacientes negros atendidos em nossos consultórios de psicanálise, o que não deve ser diferente na maioria dos países latinoamericanos. No Brasil, 56,2% da população é de negros e pelo menos 98% dos psicanalistas no Brasil são brancos. A desproporção é chocante. A presidente da Brasileira, Ane Marlise Port Rodrigues, sensível ao fato histórico que ali se colocava, convocou uma reunião geral em agosto/2020 para debater o tema, e desta reunião foi formado um grupo voluntário de psicanalistas chamado Força Tarefa, para formular e apresentar um projeto de acessibilidade racial.
A partir daí, o grupo formado pelos psicanalistas Astrid Ribeiro, Beatriz Behs, Cesar Antunes, Eliane Nogueira, Ignácio Paim, Lisiane Cervo e Vera Hartmann, reuniu-se sistematicamente, estudou autores negros, chamou professores de universidade que trabalham com cotistas, conversou com colegas de dentro e de fora da Brasileira, participou de eventos e iniciou a escrita do projeto, com auxílio direto da presidente Ane Marlise. Alinhado com a Força Tarefa, juntou-se um grupo de estudos de “Colonialismo, racismo e desigualdade social” (coordenado por Janine Severo, Leonardo Franciscelli e Sandra Fagundes), disposto a iniciar o letramento em racismo na instituição. A biblioteca adquiriu uma leva importante de livros de autores negros e eventos científicos foram realizados neste período. O movimento se fortaleceu, dando a entender a irreversibilidade de falarmos e de agirmos sobre tão importante tema.
Foram 8 meses incansáveis na tarefa de produzir o Projeto Ubuntu (filosofia africana que significa solidariedade, humanidade com o outro, “eu sou, por que tu és”). Em 27 de abril de 2021, após adiamentos por conta da pandemia, foi convocada finalmente a assembleia onde se votaria o projeto. Um mês antes, todos os membros da SBPdePA receberam o projeto-piloto, para leitura e posterior envio de críticas e sugestões que parecessem necessárias. O projeto, composto de 10 páginas, contém referencial teórico, debate de ideias, desenvolvimento de ações e referencial bibliográfico. Entre as ações propostas, o grupo destaca a necessidade da criação de um fundo financeiro que subsidie a formação analítica dos negros e negras postulantes, porque até hoje, mesmo com projetos para pessoas de baixa renda em diversas instituições, os negros não conseguiram acessar a formação analítica, por impossibilidade financeira real . A desigualdade social e o abismo de classes no Brasil é imenso, atingindo em especial a população negra, vítima da escravidão durante 3 longos séculos. Também foi proposto um adendo que prevê a acessibilidade de postulantes indígenas com as mesmas prerrogativas do projeto Ubuntu.
A assembleia foi histórica. Mais de 70% dos associados e titulares compareceram. Ainda que se percebessem muitos questionamentos e resistências, após 2 horas de debates, houve a votação e ela foi aprovada por unanimidade. Um passo gigante se deu. Pequeno diante da magnitude do que há por fazer, mas ainda assim se vivenciou um dia único para a psicanálise brasileira.
A partir dessa assembleia, o grupo Força Tarefa passou a se chamar COMISSÃO UBUNTU. Irá agora trabalhar na especificação de cada item para ganhar o consenso do projeto junto aos membros da instituição e ir conscientizando sobre a importância da participação de todos por meio do letramento.
A SBPdePA saiu maior deste enfrentamento, cresceu enquanto instituição e espera reverberar para outras instituições esta conquista que não é apenas dos negros, é da psicanálise e dos psicanalistas, em sua humanidade. Também é importante salientar que isto acarretará avanços significativos em nossa cultura institucional e um enriquecimento ímpar na convivência com os negros e negras, combatendo preconceitos e aprendendo novas linguagens. Trabalhamos com a dor do outro, não é possível que ela só tenha alívio no lado branco, que ela tenha cor.
Eliane Nogueira- psicanalista da SBPdePA e coordenadora da Comissão UBUNTU