Manifesto Psicanálise na Comunidade

Foto do texto “Judith Butler: o luto é um ato político em meio à pandemia e suas disparidades.”, por George Yancy*. Créditos: Leonard Ortiz/MediaNews Group/Orange County Register via Getty Images

AUTORES: grupo de psicanalistas da SPPA que trabalha com a comunidade

Bem antes de a grande luz (luce) do Paraíso resplandecer, Dante caminhou pelo Inferno e, enquanto observava a oitava vala infernal – vala política, caso existisse, visto que aí se reconheciam alguns notáveis de Florença reunidos com outros sob a mesma condenação de “conselheiros pérfidos” – percebeu a “pequena luz” (lucciola) dos pirilampos.

Naquele espaço a luz não resplandecia, havendo apenas uma treva onde crepitavam timidamente os “conselheiros pérfidos”, os políticos desonestos.

Mas, salpicando a escuridão, despontavam pequenas chamas que pareciam vaga-lumes, aqueles que as pessoas do campo, nas belas noites de verão, veem esvoaçar, aqui e ali, no acaso de seu esplendor discreto, bruxuleante.

Chegamos ao nosso inferno: somos um grupo de psicanalistas da SPPA (Sociedade Psicanalitica de Porto Alegre) que trabalha há 14 anos em parceria com a SMED (Secretaria Municipal de Educação) de nosso município, realizando rodas de conversa com educadores de aproximadamente 240 escolas comunitárias de educação infantil, conveniadas com aquela secretaria. Mais de 20 mil crianças são atendidas nestas escolas, por mais de quatro mil educadores, que passam seus dias dedicando-se de forma incansável, sobretudo criativa, levando-se em conta a precariedade das condições materiais e mesmo formativa.

Nestas escolas as crianças passam o dia encontrando o que, no mais das vezes, não alcançam em seus lares precários, destroçados pela violência domestica e falta de condições econômicas, muitas vezes mínimas.

Fomos surpreendidos, no dia 16/04/2020, pela notícia de que, no dia anterior, o prefeito de nossa cidade suspendia, retroativamente a primeiro de abril, os contratos de todas as escolas conveniadas que, desde 20 de março encontravam-se com suas atividades suspensas por meio de decreto municipal, em razão da pandemia.

O argumento da prefeitura é que a lei não permite que a administração pública mantenha pagamentos ou transferência de recursos para entidades parceiras sem a completa execução prevista em plano de trabalho e cita as dificuldades financeiras do município para enfrentar a pandemia, quando a verba destinada à manutenção deste programa de parceria já havia sido recebida pela prefeitura.

Da fragilidade humana todos sabem e a experimentamos – ela é condição natural, que neste momento se revela em potência máxima frente ao vírus. O que nos impressiona é o ponto a que pode chegar a desresponsabilização e o tratamento insensível com que se podem tratar uns aos outros, em especial o governo, que deveria ter a seu cargo o cuidado prioritário de suas crianças – o ponto mais frágil de toda a cadeia.

Nós, vaga-lumes, tentamos resistir como seres humanos e profissionais dedicados à infância, ao nos manifestarmos junto às autoridades competentes – Ministério Público – com quem formamos uma rede, que parece manter a luta pela dignidade destes educadores.

Ao lado desta ação mais específica, que foge a nosso trabalho diário, oferecemos na SPPA as Rodas de Conversa Solidária. Mas não podemos deixar de manifestar aqui nosso repúdio absoluto pelo abandono cruel, da parte do poder público, daqueles que seriam os primeiros a serem sujeitos de preocupação e cuidados. Sabemos que a pandemia expõe a vulnerabilidade ampliada à doença de todos que não têm acesso ou não podem pagar pelos cuidados de saúde.

Bibliografia:                         

Texto inspirado em

  •  “Sobrevivência dos Vagalumes”, Georges Didi-Huberman, Editora UFMG, 2011, Belo Horizonte
  • * “Judith Butler: o luto é um ato político em meio à pandemia e suas disparidades.”, por George Yancy, 04/05/2020, editado em Carta Maior, portal da Esquerda brasileira e da América Latina

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