Alexa Meade, Autorretrato (2010)
Entrevista realizada por Laura Katz (Diretora de Comunidade e Cultura –FEPAL) e Carolina García Maggi (Membro da equipe de Comunidade e Cultura –FEPAL)
Alexandra Kohan é psicanalista e professora regular da Cátedra II de Psicanálise: Escola francesa, da Faculdade de Psicologia da Universidade de Buenos Aires. Integra o grupo de investigação e leitura Psicoanálisis Zona Franca. Fez mestrado em Estudos Literários na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires (UBA). Ao terminar o curso escreveu a tese Barthes e Lacan: la lectura como resistencia a la doxa. Habitualmente colabora com a Revista Polvo, Revista Invisibles e para outros meios. Colaborou em Feminismos, de Leticia Martin editada por Letras del Sur, em 2017. É coordenadora diversos grupos de leitura.
Acaba de publicar o livro digital Psicoanálisis: por una erótica contra natura, pela IndieLibros.
1. Nas propostas e ideias que percorrem os seus escritos vemos um interesse pujante e enérgico por advertir os efeitos perturbadores, eclipsantes, de ideais supostamente emancipadores, o que pressupõe distintas versões de feminismo. Quais seriam essas versões?
Para mim o problema é misturar –isto é ensinado pelo psicanalista Juan Ritvo- o plano das reivindicações públicas com o plano do erotismo. Hoje há una superposição um pouco mascarada destes dois planos. Poder-se-ia dizer que o slogan ou as palavras de ordem “o pessoal é político” está invertido e agora o político fica subsumido no pessoal. É aí que poderíamos estabelecer a diferença entre “o pessoal é político”, e então as demandas se articulam em um coletivo e, nas antípodas, uma formação de massa onde as singularidades se anulam e se superpõem a partir de um “nós” homogêneo que expulsa um “eles”, em que não se distinguem singularidades e tudo é visto sob a lente da polaridade vítima-vitimário. As diferentes versões colocam em cena distintos modos de conceber o sujeito. Evidentemente que há feminismos que transcendem estes debates, e que são os que têm verdadeira vocação emancipatória, e esses são os feminismos com os quais me interessa construir uma interlocução que tenha as consequências políticas que buscamos.
2. Quais poderiam ser os modos de resistência à doxa, às verdades instituídas como dogmas, já que algo disto parece se reinstalar sempre? Destituem-se doxas e se instalam outras novas?
Efetivamente, não podemos viver fora da doxa. Por isso, pode-se exercitar certa resistência. A resistência posso pensá-la, em princípio, reconhecendo essas doxas para poder lê-las e, nesse contexto, fazê-las cair, diluí-las. Se pensamos, com Barthes, que estereótipo vem de stereos – que significa sólido-, ler a doxa implicaria dissolver essa solidificação de sentido coagulado. Ou seja, é a prevenção de que aquilo que é formulado como resistência à doxa pode, por sua vez, transformar-se em doxa, afirma o próprio Barthes. Nesse sentido, trata-se de estar alerta, de não adormecer no conforto dos saberes estabelecidos, das verdades que se pretendem naturais e eternas. Trata-se, em definitivo, de uma leitura nas antípodas da mera repetição mântrica de fórmulas. Para mim, a leitura é acontecimento, ocorrência e está nas antípodas do dogma. “O dogma”, diz o psicanalista Juan Ritvo, “é o que impede ler”; o dogma só apela ao inquestionável, ao que se erige sempre igual a si mesmo.
3. As suas propostas tentam perturbar saberes pregnantes, cativantes, reordenadores em relação à sexualidade, ao amor, ao desejo no laço com os outros. Como o ódio poderia entrar nestes discursos que erradicam ilusoriamente a alteridade constitutiva?
Nos discursos e sentidos que trato de ler o ódio é repelido, rejeitado e concebido sempre como algo que não nos concerne. O ódio é atribuído ao outro, mas, valha o paradoxo, essa alteridade não é vivida como própria. Nestes discursos se veicula a ideia de um sujeito com vontade, autônomo e desprovido de mediação. Desse modo se concebe ao outro como “externo” ao sujeito. Mantém-se a ideia de que entre o eu e o outro não há mediações, não há opacidades, não há fantasias; definitivamente: pressupõem-se sujeitos não afetados pela linguagem. Concebe-se um sujeito pré-freudiano, dono dos seus dizeres, da sua vontade e de seus atos. Então, qualquer vislumbre de ódio que possa surgir, atribui-se ao outro e estes sujeitos se garantem em posições –algo pueril- concebendo que “o outro é mau e eu sou bom”. Tudo o que é rejeitado dessa alteridade constitutiva retorna ao sujeito como ódio do outro. Nesse sentido, vive-se em um estado de ameaça permanente. Finalmente: rejeita-se o que há de fantasia no erotismo, o que pode haver de violência constitutiva nas fantasias. Rejeitar a alteridade constitutiva é arrasar o descobrimento freudiano e pretender que o mundo seja um mundo de individualidades não afetadas por ninguém.
4. Que lugar ocupa o que a Senhora denomina feminismo neoliberal?
Não sei que lugar ocupa, mas está bem estendido. O que me interessa é, em todo caso, delimitar, discernir, cindir no meio da massa as distinções e as prioridades de um feminismo que é mais representativo e que possa ter as consequências políticas que pretendemos. Neste aspecto, quando advirto que tudo passa pelo debate sobre o aborto, que algumas feministas só se interessam por isso ou pela exigência de que os políticos digam qual é a sua posição a respeito desse único tema, me parece algo reducionista e ideologicamente nas antípodas do que penso. Um feminismo que não articule outras demandas sociais como, por exemplo, políticas de saúde pública, de educação, de equidade social (por mencionar apenas algumas) não é o feminismo com o que me interessa construir algo em comum. A euforia causada pelo discurso da deputada macrista Silvia Lospennato por ter votado a favor da legalização do aborto depois de ser a mesma que vota o esvaziamento dos hospitais públicos, que faz parte de um governo que faz desaparecer o Ministério de Saúde, que leva adiante uma política de previdência social depredadora, que tira a possibilidade de as donas de casa se aposentar, que produz o empobrecimento de milhões através da sua política de ajuste feroz, me parece ideologicamente desprezível. Creio que, como movimento emancipatório, o feminismo que me interessa, veicula reivindicações contrárias do neoliberalismo, sim. Se não, seria esse feminismo chamado “liberal” (acaba de sair um manifesto muito bom que se chama Feminismo para 99%, de Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser, editado por Rara Avis) que só entende as reivindicações do seguinte modo: agora somos as mulheres as que temos que ocupar posições de poder e então sermos nós as que oprimimos aos demais. O famoso “empoderamento” conduz ao que estas autoras destacam: o acesso ao poder de umas poucas sem questionar-se por que estão vedados certos direitos para uma maioria. É um feminismo que se pretende autônomo e cindido das demais reivindicações sociais e políticas públicas que afetam à maioria.
5. As novas modalidades de fiscalização e definições identitárias implicariam uma liberdade sem pathos?
Definitivamente, não. Porque, além disso, se deveria revisar o que se entende por liberdade. O que essas modalidades pretendem é que o mal-entendido entre os sexos seja uma questão de “informação” e que, à medida que estivermos informados poderemos viver melhor. Por outra parte, o que chama à atenção destes discursos é que se pretendem emancipatórios, mas a sua enunciação é absolutamente prescritiva. A fiscalização sobre os corpos, que antes provinha somente do Estado, agora se estendeu ao controle e ao disciplinamento dos pares. Pressupor que podemos fiscalizar o erotismo implica moralismo e imperativos. Há um problema quando as palavras de ordem política começam a ser prescrições sobre os modos de relação.
Não há corpo sem pathos, isso nos ensina Freud. O problema é patologizar esses modos de afetação do corpo, pressupor que é possível extirpar esse pathos e, além disso, desconhecer a cisão fundamental entre corpo e saber.