FEPAL ATENDIENDO À EMERGÊNCIA – Sexta Mesa de Diálogo

PSICANALISTAS NA COMUNIDADE

Grupo de estudos FEPAL

VI Mesa de diálogo

Julho 11, 2020.

psicanalistasnacomunidade@gmail.com

Colaboração na tradução: María Noel Brena Sertã (Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro)

WEBINAR FEPAL, sexta Mesa de diálogos, sábado 11 de julio 2020

Maria Cristina Fulco

Presidenta de FEPAL 2018-2020

– Directora Científica de APU 1996-97

– Presidenta de APU  2000-2002

– Directora del Instituto de APU 2004-2006

– Directora del Instituto de APU 2012-2014

– Directora del Instituto de APU 2016-2018

– Coordinadora de la Comisión de Formación y Transmisión del Psicoanálisis de FEPAL 2014-2018

– E&O Commetee de IPA comité de Formación de IPA 2015-2017

Apresentação

Apresentamos, hoje, dentro do ciclo “FEPAL atendendo a emergência” esta “Sexta mesa de diálogo”, organizada pelo Grupo de Estudos da FEPAL: “Psicanalistas na Comunidade”, cuja proposta é apresentar os diversos trabalhos que as sociedades psicanalíticas latinoamericanas realizam na comunidade, particularmente nestes tempos de crise, como efeito da pandemia global que assola o mundo.

Como vocês sabem, o compromisso da psicanálise com a comunidade remonta a suas origens. Os textos freudianos, tais como: o Mal Estar na Cultura; Psicología das Massas; Tótem e Tabú; O futuro de uma Ilusão; para citar alguns; somados ao interesse de Freud em impulsionar a criação de policlínicas gratuitas para atendimento aos pacientes, são prova disso.

Desde então, a comunidade psicanalítica tem sustentado o compromisso histórico de trabalhar com a comunidade, com a cultura, com a educação, sem dar as costas aos acontecimentos políticos ocorridos em nossa região e no mundo, ao longo do século XX e até os días atuais.

Podemos dizer que é desse compromisso que dá conta, em nossa região, esse novo Grupo de Psicanalistas na Comunidade, assim como a área de “Comunidade e Cultura da FEPAL”, que vem trabalhando há décadas nas diferentes diretrizes de nossa Federação.

Trata-se, em ambos os casos, de uma forma de posicionamento, que é inerente ao compromisso do nosso ofício, que é trabalhar com a dor, o sofrimento e a defesa dos Direitos Humanos.

Hoje, vamos escutar e dialogar com quatro colegas queridas e com diferentes representantes dos grupos de trabalho que formam esse Grupo de Estudos da FEPAL.

A tarefa se dá em diferentes espaços da comunidade.  A partir de uma visão psicanalítica, têm sido criados dispositivos de intervenção e investigação onde o instituído e o instituinte, como costuma dizer Isabel Mansione, dialogam com as mudanças históricas, em contato permanente com os saberes de outras disciplinas.                           

Pode-se dizer que um dos laços que unem esses diversos grupos é a resposta imediata dada, nestes tempos de pandemia, pelas diferentes sociedades, que podemos sintetizar como “Aquí estamos”!!

Para finalizar, apresento agora a Isabel Mansione, coordenadora deste diálogo e do grupo de estudos Psicanalistas na Comunidade.

Isabel Mansione

– Coordinadora del grupo de estudios “Psicoanalistas en la comunidad”.

– Licenciada y profesora en Psicología (UBA).

– Psicoanalista (APdeBA).

– Miembro de FEPAL y de IPA.

– Postítulo en investigación educativa (UNC).

– Magister en gestión de proyectos comunitarios (CAECE).

– Coordinadora del grupo de estudio Psicoanalistas en la Comunidad de FEPAL.

– Coordinadora del proyecto comunitario Educreando Binacional.

– Miembro de la comisión de investigación de FEPAL.

– Miembro del Centro Liberman de ApdeBA.

– Profesora titular de practicas profesionales supervisadas de la especialización en

  Psicología Clínica de Niños y Adolescentes 2015 y continua.

– Ex miembro de la Comisión de Educación en Fepal 2014/18.

Apresentação do grupo de estudo

Meu nome é Isabel Mansione e as colegas que me acompanham na coordenação deste grupo de estudos são Eliane Marcelino, Cristina Curiel y Lilian Ferreyros.

Em nossa estreia diante da comunidade como grupo de estudos da FEPAL, agradecemos à Dra.Fulco pela sua apresentação e pelo seu estímulo permanente a nós, psicanalistas que trabalhamos em projetos comunitários de diferentes países. No pasado Horacio Etchegoyen, y no presente Marcelo Viñar, Sara Zac, Virginia Ungar, Ricardo Carlino, Alicia Briseño, entre outros, têm apoiado o início e a evolução deste grupo chamado Psicanalistas na comunidade.

O movimiento psicanalítico contribui, através das suas práticas comunitárias, com o desenvolvimento da população em geral e, em especial, da mais desfavorecida em todos os sentidos, fazendo-o a partir de uma profunda vocação humanista. A presença na comunidade inclui intervenções com a população que apresenta síntomas, a população de risco e a população potencialmente sã. Com relação às populações de risco, tratam-se de pessoas e/ou grupos impactados pelos problemas sócioeconômicos e culturais que têm a força invalidante da marginalização.

As práticas na comunidade são uma possível resposta coerente a algunas considerações a partir de uma perspectiva psicanalítica: 1. a problemática do desejo e da transferência, que não se limitam à produção de sintomas neuróticos, mas possibilitam a compreensão de aspectos profundos do psiquismo; 2. a formação do sujeito em um laço social, e; 3. os fenômenos da cultura.

Hoje identificamos na comunidade o desencontro de expectativas, o enfraquecimento da autoridade, a presença de leis paralelas, danos sem reparações, mentiras, segregação. Tudo isso produz um tipo de sofrimento que, em geral, não pode ser nomeado e costuma aparecer disruptivamente. Nossa presença visa colocar palavras, pensamento e direitos humanos onde até então houve a atuação.

Enquanto grupo de projetos, compartilhamos alguns pressupostos:

  • Estamos em um mundo de ideias sem fronteiras, ideias que não são propriedade privada, e nosso país é a comunidade humana. Nosso trabalho é com o cuidado pela vida, nos grupos e nas instituições.
  • Trabalhamos em campo, assumindo um compromiso a partir de uma identidade pública, precisando, portanto, de sustenção para cuidar do outro e nos cuidarmos.
  • A teoría está presente nos feitos, e nosso propósito é encontrá-la e devolvê-la para a comunidade, que generosamente nos tem permitido conhecê-la.
  • Pensamos a partir da responsabilidade social, porque nossa comunicação é com a COMUNIDADE e, quando possível, com as políticas públicas.
  • Difundimos a psicanálise, que tornamos viva na interdisciplinaridade.

Lilian Ferreyros (Sociedad Psicoanalítica de Perú)

– Psicoanalista de la Sociedad Peruana de Psicoanálisis.

– Miembro Fundador de la Asociación Peruana de Psicoterapia de Niños y Adolescentes

(APPPNA).

– Ex – Editora de la Revista “Psicoanálisis”, de la Sociedad Peruana de Psicoanálisis.

– Miembro de “Psicólogos Contigo”. Coordinadora del equipo de Barbablanca. Participa en “Tiempos de Escucha”, programa de apoyo a los de primera línea en tiempos de pandemia, en Selva y Ceja de Selva en el Perú.

– Ha escrito varios textos sobre el trabajo en el análisis con metáforas, el uso del juego del garabato, pensamiento mágico en la comunidad, análisis de un diario de gran circulación, entre otros.

La pieza psicoanalítica.

Quando reflito sobre a forma com que a Psicanálise pode ser aplicada em espaços da comunidade, penso nessas experiências bastante comuns na área musical em que uma música préexistente é interpretada por um músico de outro estilo musical; o músico recebe a música e faz uma adaptação ao seu estilo, fazendo-o de tal maneira que a origem da música seja respeitada. Geralmente o que resulta dessa experiência é algo muito bom. Por exemplo, um bolero interpretado por um grupo de rock, um tango por um grupo de merengue, ou uma “ranchera” por um grupo de música “criolla”.

Seguindo essa imagem, podemos nos indagar: que peça psicanalítica originária seria essa, transformada, adaptada à linguagem e experiência de distintos grupos humanos, de comunidades diferenciadas, dentro de uma mesma comunidade? Reconstruída e adaptada, pode continuar conservando a sua essência original. Quais seriam os acordes básicos, elementos invariáveis que poderíam ser entificados?  Acordes complexos, criados por Freud há mais de um século, não apenas de três notas, como os que nos ensinaram nas aulas de música na escola.

Acorde”, além disso, deriva de coração, e ali encontramos algo fundamental. Entram o coração, as emoções e, também, o aparelho para pensar, representar fantasiar, imaginar.

Pode-se trabalhar em várias dimensões, com diferentes “idomas pessoais”, sociais, comunitários. Haverá variações enquanto sejam utilizados na costa, na serra, na selva; enquanto seja aplicado em escolas, hospitais, presídios; grupos humanos de distintas procedências.

Quais seriam as raízes que não se perderiam? Quais seriam os acordes essenciais? Às vezes seria apenas um toque, escondido entre um enorme barulho de uma realidade em convulsão. Outras vezes podem ser criadas intervenções profundamente analíticas.

Podemos destacar três notas:

  1. A escuta analítica. Para explicar isto, utilizo as palavras de Freud (1912), em seu trabalho “ Recomendações ao médico que pratica a psicanálise” :  “deve orientar seu inconsciente, como órgão receptor, para o inconsciente emissor do doente, colocar-e ante o analisando como o receptor do telefone em relação ao microfone.” (p.156)

Os receptores dos psicanalistas tês sido especialmente treinados para captar os emissores dos pacientes, individualmente, que chegam ao consultório. Na formação dos candidatos faz muita falta o treinamento para trabalhar com grupos, não apenas grupos terapêuticos, mas operativos, grupos de escuta, dinâmicos, com diferentes comunidades e suas demandas.

  • A transferência. É uma forma de atividade da fantasia do emissor, uma maneira de pensar pela pela primeira vez, com respeito ao analista-receptor, os eventos emocionais, sejam estes de um passado longínquo ou próximo, que por terem sido bastante perturbadores, não puderam ser experimentados no momento em que aconteceram. Ocorrem, então, no – aquí e agora – com o psicanalista, ou com os líderes, ou com os vários receptores. Os territórios do inconsciente que não foram representados (por exemplo, devido ao impacto de um trauma, a despojos ¿ afectivos, etc) podem ser alcançados compreendendo-se essas transferências.
  1. E a terceira nota poderia ser mais pessoal, mas carrega em si as duas primeiras. Como escuta o receptor: O que ele faz com aquilo que escuta? É um trabalho adicional, mental e emocional. Além de escutar o conteúdo manifeesto, o recepto pode abrir-se para um território intermediário: intermediário entre a realidade interna e externa; esse espaço winnicottiano que na atualidade todos os psicanalistas têm em algum momento estudado. Figuras, imagens, metáforas na mente daqueles que se comunicam, tentando simbolizar aquello que não pôde ser ainda representado e transformado. Reparado. Cria-se assim, um novo campo interpessoal, mútuo, cultural.

Quando a Psicanálise sai para trabalhar com a comunidade, em analogia ao jogo do rabisco, de Winnicott, poderíamos falar de um “rabisco mental comunitário”. Alguns psicanalistas contemporâneos falam de “quimeras!”, “terceiro analítico”, “fenômeno de intersubjetividade” (NÃO ESTOU SEGURA) fazendo alusão a esta nota de criação de algo novo; criação mútua, compartilhada. Podem ser produtos grupais, resultado de afinidades inconscientes que provêm de zonas traumáticas dos protagonistas (todos, incluindo o psicanalista). Este trabalho de imaginação possibilita configurar, representar e compartilhar as zonas de sofrimentos de todas partes. Isto é muito interessante. É como o rabisco compartilhado que costumamos fazer com as crianças.

Pode-se, então, criar uma “situação analítica” com todo tipo de participantes. Alguns grupos trabalharão psicanaliticamente mais do que outros, o fundamental é o ânimo para cooperar e transformar. “Eros comunitário”, poderiamos dizer dessa maneira. Comunidade deriva do latim communis, palavra composta que significa cooperação e corresponsabilidade.

Dentro da comunidade há comunidades, o que pareceria uma redundância, mas é importante abstrair sobre esse conceito. Essas comunidades são um grande pilar (além do Estado e do mercado) que tem sido abandonado (assim como nós, psicanalístas, também temos descuidado das comunidades). Para alcançar sociedades mais prósperas, há que se levar em conta as comunidades. Podem ser populações de uma certa região, refugiados, operários, migrantes, grupos de jovens empreendedores, coletivos de mulheres, médicos, alunos, professores, etc… e, atualmente, comunidades virtuais unidas pela internet.

Podemos dizer, sobre as intervenções nas diferentes comunidades dentro de uma mesma comunidade, a mesma coisa que escutamos hoje em dia, durante a pandemia, sobre como fazer para não perder a assimetria analítica nas sessões online com pacientes. Precisamos alcançar um mínimo de atenção flutuante, atentar para que o excesso de empatia não se converta em identificação com o outro (ou os outros). Esse é um cuidado que devemos ter, especialmente quando trabalhamos com grupos vulneráveis, com ou sem pandemia. Na realidade, a pandemia tem servido para que os psicanalistas prestem mais atenção à comunidade.

Para o Peru, trata-se de um alerta: o país é multilinguístico, possuindo mais de 50 idiomas. Além disso, nos bairros marginais da cidade de Lima vive um terço da população. A população não tem acesso a água potável e paga mais do que o dobre por ela, que é de pior qualidade. Nossa sociedade sofre de desigualdade e pobreza. Se na América Latina se investe 9% do PIB em saúde, no Peru investe-se apenas a metade disso. Entretanto, temos a esperança de que as comunidades organizadas e com canais de expressão possam oferecer soluções ajustadas a suas realiddes e complementar o Estado. Cada vez entende-se mais que as comunidades devem ser reavaliadas e organizadas para proteger as pessoas e a sociedade. A vinculação das pessoas com as suas comunidades é o que garante um seguro social, apoio psicológico e humano.

Os psicanalistas somos uma comunidade que tem se mantido fechada em seu consultório. A Fepal está conseguindo vincular e fortalecer a comunidade de psicanalistas através destes Webinars, além de dar espaço para este Grupo de Estudos, que hoje nos convoca.

Cristina Curiel Castelazo (Sociedad Psicoanalítica de México)

– Psicoanalista de la Sociedad Psicoanalítica de México, miembro activo de IPA Y

FEPAL.

– Doctorado en Investigación Psicoanalitica, Especialidad en Psicoterapia

Psicoanalítica y Maestría en Psicoanálisis por el Instituto de Estudios de

Psicoanalisis y Psicoterapia A.C.

– Psicóloga por la Universidad Iberoamericana, A.C.

– Docente en la Universidad Iberoamericana, A.C.

– Docente en el Instituto de Psicoanálisis de la Sociedad Psicoanalítica de México.

– Consulta privada con adolescentes y adultos.

– Secretaria de la Mesa Directiva de la Sociedad Psicoanalítica de México.

El futuro como psicoanalistas en la comunidad.

Faz alguns meses poderíamos ter apresentado diferentes planos para o futuro, tanto para o nosso grupo quanto para o trabalho psicanalítico de maneira geral. Entretanto, a realidade que agora enfrentamos, frente à pandemia, requer que voltemos a pensar sobre o que faremos no futuro.

Em primeiro lugar, antes de conseguir imaginar como serão as nossas intervenções daqui em diante, precisamos considerar a cada momento como se apresenta a situação em cada um de nossos países e nas comunidades, e elaborar continuamente as implicações que isso representa para as intervenções que realizamos na comunidade, levando em conta que os contágios podem aumentar ou diminuir, e que aquilo que sabemos hoje pode mudar nas próximas semanas.

Temos precisado, como nunca, das ferramentas internas adquiridas através de nossa experiência de vida e de trabalho e, claro, também de nossa própria análise, ferramentas que nos possibilitem sermos flexíveis diante das mudanças e da preocupação que temos com respeito ao vírus, ao contágio e aos efeitos desta pandemia de maneira geral, suas consequências em todos os níveis, incluindo, evidentemente, o nível emocional. As precauções que agora necessitamos considerar devem ser compreendidas como elementos que visem primordialmente proteger as intervenções e que possibilitem que todos possamos continuar com o trabalho, que até pouco tempo atrás considerávamos feito.

Através de nosso grupo, temos observado as diversas formas de responder, na atualidade, diante da emergência. Temos conseguido dar atenção à comunidade a partir dos diferentes braços que se estendem aos grupos vulneráveis, seja através do trabalho em hospitais, com jovens, em escolas, com crianças e pais de família, ou através de linhas telefônicas de emergência. Temos podido perceber, com o passar do tempo, que existe uma responsabilidade social que pode ser compreendida e atendida através da psicanálise, e que o trabalho comunitário transforma os psicanalistas, porque nos faz prestar atenção ao contexto e nos mobiliza, situando-nos na cultura desde a visão do outro, compreendendo, para além das paredes de nossos consultórios, que não há uma cultura melhor do que outra, se não, unicamente, diferentes formas de adaptar-se e de compreender a vida.

Nós, das equipes que realizamos intervenções comunitárias, nos surpreendemos há alguns meses com a impossibilidade de contatar as comunidades, com a realidade de que, sem poder sair de casa, o trabalho de campo presencial complicava-se e requeria alguma inovação. Trabalhar em uma comunidade nos atravessa; trata-se de uma experiência que dá vida à psicanálise, porque a leva a um território da vivência diária; representa uma transformação e uma reflexão constantes que, nos momentos como o atual, nos obriga a enfrentar de diferentes maneiras a limitação que pode representar a intervenção à distância, ou as modificações que fazem necessárias para seguir com o trabalho.

Em alguns casos existem obstáculos por questões de tecnologia, que requerem pensar em novos elementos e em novas formas de intervenção, enquanto que em outros nos permitem pensar questões a respeito de situações em que, por exemplo, tenhamos que considerar as intervenções telefônicas como uma opção que beneficie a certas pessoas a mais longo prazo, já que por limitações econômicas ou pessoas, talvez se torne difícil o acesso ao centro comunitário ou ao lugar onde se realiza a intervenção, transformando, assim, as sessões telefônicas em opões futuras de intervenção comunitária, que, se não substituem nunca as intervenções presenciais, abrem por outro lado possiblidades para alguns que não poderiam se outra forma se beneficiar das intervenções.

Desta maneira, a contingência leva-nos a pensar em novas formas de alcançar a comunidade, na possibilidade de recorrer a meios de comunicação de massa e, como sempre, na importância da prevenção. Além do cuidado que podemos oferecer à comunidade, é importante considerar o cuidado que precisamos ter conosco. A presença de um vírus novo, contra o qual não contamos com defesas, expõe de maneira manifesta a vulnerabilidade que, em outros momentos não observamos e que representa um obstáculo real nas intervenções e no desenvolvimento de nossos projetos. Os psicanalistas devemos considerar, cotidianamente, o auto cuidado, tanto no trabalho que realizamos dentro do consultório quando naquele feito nas comunidades. A pandemia torna essencial o exercício de reflexão sobre os temores que cada um pode sentir ao sair de casa, ao aproximar-se de outros, assim como a considerar a própria vulnerabilidade, o pertencimento a grupo de risco, sabendo-se que quando tememos pela nossa própria segurança, o trabalho psicanalítico torna-se impossível.

Dentro do grupo de Psicanalistas na comunidade, assumimos agora o compromisso de trabalhar juntos e a oportunidade de nos alimentarmos mutuamente, entendendo que as diversas realidade da América Latina podem ser bastante semelhantes e que, ao compartilhar experiências, podemos encontrar ressonâncias entre nós, já que as ideias de uns podem apoiar o trabalho de outros. Inclusive nas questões relativas ao autocuidado, podemos nos apoiar e nos enxergar como uma rede, de maneira a enriquecer nosso trabalho.

M. Teresa Naylor Rocha. (Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro)

– Psicanalista com função didática do Instituto de Formação da Sociedade Brasileira de

– Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ), desde 2014.

– Psicanalista de adultos e crianças.

– Membro fundador e coordenadora do Programa de Psicanálise e Interface Social (PROPIS) da SBPRJ, desde 2006.

– Coordenadora do Projeto TRAVESSIA de Ações de Cuidado a crianças, adolescentes, pais e professores em áreas de alta vulnerabilidade social, desde 2003. Parceria com a Secretaria Municipal de Educação, desde 2016. Em atividade online durante a pandemia.

Trabalhos em comunidade.

Sobre trabalho psicanalítico em cenários variados, para começar, uma afirmativa: este trabalho não é uma adaptação ou aplicação do saber psicanalítico. Como em qualquer processo analítico, ele nos convoca igualmente ao desafio de escutar o diferente em sua singularidade e particularidades culturais.

Freud, em 1918/1919, no Congresso de Budapeste e no artigo “Caminhos da terapia psicanalítica”, afinado com a realidade do pós-guerra, afirma sermos um punhado de pessoas, e cada um de nós, mesmo trabalhando esforçadamente, pode se dedicar apenas a um número escasso de doentes. Diante da miséria que há no mundo, é insuficiente o que podemos abolir. A prática se limita às camadas superiores da sociedade enquanto para as amplas camadas populares, que tanto sofrem com as neuroses, nada podemos fazer atualmente. Freud diz que em algum momento a consciência da sociedade despertará para o fato de que as neuroses não afetam menos a saúde do povo do que a tuberculose, e ambas não podem ser tratadas pelo próprio indivíduo. Ele enfatiza que esses tratamentos serão gratuitos, mas que talvez demore para que o Estado sinta como urgência esses deveres (…) mas um dia isso terá que ocorrer.

Desta forma, Freud impactou toda a 1ª e 2ª geração de psicanalistas no sentido de os levarem ao campo social. Ele alerta que a psicanálise não poderia ficar de fora do movimento de grande mobilização social da época, correndo o risco de não sobreviver. Ele anuncia em Budapeste sua posição de repensar o processo terapêutico até aquele momento defendido, para ampliar a assistência em massa. Freud mantinha seu trabalho tanto pelo ambiente social quanto pela investigação individual e pelos direitos e responsabilidade sociais. Foi no período entre as duas grandes guerras mundiais (1918-1938) que houve a criação das clínicas públicas espalhadas por 12 cidades (Berlim, Viena, Frankfurt, Trieste, Moscou, Londres etc.).

Nesse período debatia-se muito sobre como abordar as questões e a construção de diferentes dispositivos, mas em nenhum momento esses primeiros psicanalistas duvidavam que estavam de acordo com o rigor psicanalítico defendido por Freud. Após a ascensão do nazismo, as clínicas sofreram uma “limpeza”, se livrando dos analistas judeus. Na diáspora, alguns mantiveram a tocha progressista e outros a confinaram ao esquecimento. Muitos, em 1946, ligados ao Círculo de Fenichel, como Marie Langer, Pichon-Rivière e Angel Garma vieram para a Argentina. Na década de 50, alguns médicos brasileiros foram para Buenos Aires e, retornando ao Brasil, formaram as primeiras instituições psicanalíticas (Elizabeth Ann Danto, “As clínicas públicas de Freud”).

Por outro lado, no lado que chamarei como o do esquecimento, o movimento psicanalítico fez a escolha política de uma posição chamada apolítica, que influenciou o fechamento dos psicanalistas em seus consultórios de classe média e alta.

A história é feita de movimentos de avanços e recuos, mas nesse percurso não se apagam experiências, fatos e desejos. Por conta disso, muitos psicanalistas mantiveram a tocha progressista, e continuaram a criar inúmeras iniciativas de práticas em cenários distintos do consagrado como padrão.

No Brasil, os problemas estruturais de desigualdade econômica e social geram um cenário de violência multifacetada que afeta diretamente a qualidade de vida da população como um todo, mas especialmente àqueles que vivem em áreas socialmente mais vulneráveis. A título de ilustração, a taxa de homicídio é 30 vezes maior que a da Europa; os homicídios violentos, em grande parte vitimando a população de homens-jovens-negros, equivalem à queda diária de um Boeing 737 lotado. A esse já trágico cenário, vivemos atualmente a consequência de um descaso ímpar, mas politicamente premeditado, diante da pandemia do COVID-19, com uma taxa de 70.524 mortos, em 10/07 (fora os não notificados).

O trabalho psicanalítico com populações socialmente vulneráveis nos instiga a pensar nas implicações e reverberações de nosso papel como analistas, ampliando o que entendemos como clínica e fazendo trabalhar a teoria para dar conta de settings diferenciados do tradicional.

A compreensão da saúde mental como um processo multidimensional, entre a urgência subjetiva e a problemática coletiva/desamparo social, exige trabalhar nossas ferramentas conceituais e pragmáticas, tendo em vista a complexidade dos fatores envolvidos. No entanto, essa articulação entre a esfera individual e a coletiva nos convoca a um desafio, pois ela não pode ser compreendida a partir de um modelo de tipo mecânico e temos que contemplar sua complexidade.

As práticas em cenários diversos estimulam a criação de estratégias complementares à psicanálise. Podemos lançar mão de recursos e linguagens artísticas que potencializam o processo de contato com as sensações e emoções, desejos e ansiedades recalcados ou cindidos. A preferência por trabalhos em grupo facilita a instalação de um espaço lúdico, situado entre as experiências da ilusão e desilusão, onde o sujeito interage e diferencia a fantasia da realidade, tornando-se capaz de se comunicar consigo mesmo e com os outros.

Nessas práticas frequentemente lidamos com sujeitos cujas experiências de desamparo marcam uma situação existencial de submissão seja no âmbito familiar ou decorrentes de carências concretas. Concebemos essas práticas em cenários variados operando um trabalho de escuta fina como instrumento de captação dos movimentos transferenciais, e contando com as reverberações das mensagens inconscientes dirigidas em busca de produção de sentidos e transformações defensivas.

Podemos dizer que essas práticas atuais se inspiraram, mesmo sem nos darmos conta, nos pioneiros do movimento psicanalítico, posto que Freud já apontava esse caminho. Elas atendem a miséria de um mundo contemporâneo e, mais do que nunca, na atual crise sanitária planetária que expõe o colapso de um modelo individualista. Vivemos uma tempestade que abate todos, mas alguns com melhores embarcações do que outros.

Por tudo isso, considero e defendo a experiência de práticas como recurso numa formação analítica por seu caráter de pesquisa conceitual, por sua articulação com outros saberes e diferentes linguagens artísticas, por ser uma prática que, ao assistir populações traumatizadas por diferentes fatores em settings variados expõe o analista a se mover à radicalidade do desconhecimento do outro e ao exercício da liberdade criativa através de um terreno fragmentado. Dito de outra forma, a educação/transmissão se dando pela prática que, por sua vez, ressignifica a teoria.

Quem sabe, chegou a hora de as instituições psicanalíticas despertarem diante da urgência e da consciência da necessidade e comecem a viver essas preocupações no coração dos Institutos de Formação. Nossas instituições convocadas à responsabilidade social de acesso da psicanálise a um maior número de pessoas se encontrarão em boa companhia do próprio Freud, mas já com 100 anos de atraso.

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