por Tiago Mussi
Desde a origem da psicanálise, certas obras literárias inspiraram não apenas comentários, mas reflexões sobre a própria teoria e a clínica psicanalíticas. Temos Ricardo III de Shakespeare e Alguns tipos de caráter encontrados na prática psicanalítica (1916) de Freud, assim como as Setes lições sobre Hamlet em O Seminário, livro 6 de Lacan, para citar apenas alguns exemplos célebres.
A ideia para o título da coluna surgiu a partir da leitura de Ficções (1944) de Borges, livro em que o escritor argentino propõe uma desconstrução da literatura tal como a conhecíamos até então, onde ele vai inventar resenhas de livros que nunca existiram, atribuir Dom Quixote a outro autor que não Cervantes, enfim, uma série de artifícios, para usar uma palavra cara ao próprio autor, que dão à literatura a sua dimensão de jogo, mas sem perder também a de realidade, e que, assim fazendo, problematizam a psicanálise.
Assim, entre nossos colegas psicanalistas e psicanalistas em formação, gostaríamos que compartilhassem conosco suas reflexões de leitura e como os textos de ficção os tem inspirado em seu trabalho, seja ele clínico ou teórico.
Nossa primeira entrevistada é a psicanalista Maria do Carmo Andrade Palhares, que é membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ), editora da revista TRIEB de 2011-2018 e pesquisadora dos primórdios da vida psíquica.
1 – Qual a relação entre literatura e psicanálise?
Nas mãos da literatura projetamo-nos para dentro do impossível ativando nossa imaginação criadora responsável por uma memória que ainda não se produziu. A ficção responde a uma necessidade profunda: não se contentar com a própria vida. Assim devolvemos à razão humana o desejo que sonha e a vontade que transforma. Nesse percurso esbarramos com a psicanálise, pois ancoramos essa função do irreal com as assinaturas do ser em movimento no espaço, em deslocamento no tempo, na busca de aproximar-se de si-mesmo e do outro.
Como num espelho, a psicanálise reflete um modo de estar, de escutar, de conversar, de pensar que testemunha a procura do que é oniricamente possível sem ser possível, mas pode ser expresso nas experiências dos dias e retomado nas experiências das noites. Quando não há respostas para o viver, inventar uma história cria um destino. Nesses relatos, apresentar experiências próprias, tanto da parte do analista, como da parte do paciente, presentificam e disponibilizam a face estética do self. A empreitada psicanalítica busca resgatar esse fenômeno estético que engendra a possibilidade de construir um estilo na teoria e na clínica.
O limite humano é ultrapassado pela força da imaginação, mas contido e habitado pelas palavras, ali, diante do outro, na sessão de análise ampliam-se novas trajetórias como nos textos literários. Assim afastamos o desviver, isto porque, somos acrescentados pelo ser que inventa, interroga-se, interpela-se, ao encontrar do outro lado, no divã, uma escuta receptiva, configurando se como lugar da reciprocidade humana. Nesse encontro se respira, se revive, se recomeça, buscando dimensões estéticas que constroem o processo de simbolização. Escrever e ficcionar,escutar e psicanalisar enraízam o destino do homem para além do tempo presente legitimando começos, origens, transgressões, percursos, o desejo por continuar, o reconhecimento da finitude.
2 – Como a literatura de ficção influencia no seu trabalho enquanto psicanalista?
A arte de um modo geral influencia e inspira o meu trabalho. A arte e a cultura podem se constituir em um encontro com o objeto primário que oferece vínculo e cuidados sem a ameaça e o risco da presença de um objeto invasivo. A partir daí se constitui como possibilidade de elemento fundante da criação de si, favorecendo o desenvolvimento de um self mais vivo e intenso, pleno de camadas que nos permite ultrapassar as barreiras do tempo e do real. Na clínica isso permite ofertar ao paciente um novo começo aproximando-o de experiências sensíveis e criativas no qual o self pode vir a se expressar, genuinamente, através dos sonhos, dos pensamentos, das ideias, de medos e vazios, mas sobretudo, das palavras que encontra dentro de si e pelo mundo afora.
Com a literatura posso viver e integrar ao lado do paciente, histórias suas ou não. Percorrer
tudo que nos cerca e envolve: sua subjetividade, o mundo, a natureza, fragmentos internos, traumas e sofrimentos experimentados e silenciados. Através da narrativa literária posso contar uma história, ouvir um relato ficcional, presentificar relações dolorosas, angustias insuportáveis, mediado por personagens, por imagens ficcionais, concebidas como suporte protetor para realidades que precisam se fazer ouvir no silêncio das experiências concretas.
Ao favorecer a interpenetração da realidade com a ficção amplio processos identificatórios
nos quais o paciente pode reconhecer a si mesmo, reencontrar-se com sua história de forma menos defensiva e persecutória. O que importa é a criação de uma atmosfera de confiabilidade cuja sustentação acontece a partir do que se cria, momento a momento, na análise.
3 – Que obra ou autor de literatura mais o inspirou a ser criativo em seu trabalho?
A poesia me faz ausentar do mundo físico, transcender o imediato para criar um mundo no qual me sinta em casa. A partir daí abrem-se inúmeras possibilidades criativas e terapêuticas. Nessa perspectiva, Clarice Lispector me apresenta mistério e liberdade ao dizer: “De repente as coisas não precisam fazer sentido, basta ser”. Um paciente acrescenta: “Ser louco é fácil, o difícil é ser eu mesmo”.
Além disso, Machado de Assis, Marguerite Duras e Philip Roth, me contemplam, me emocionam, me encorajam. Preciso desses elementos para usar a vida com gosto e acolher o acaso tão verdadeiramente quanto possível.
Tiago Mussi