Escravidão no Brasil, de Jean-Baptiste Debret (1768 e 1848)
No cotidiano do seu trabalho, um psicanalista elabora a história em diferentes níveis: sua história pessoal sua história como psicanalista, a história do Instituto que o formou, a história de seus pacientes e a história do país onde trabalha.
Nessa entrevista, Ney Marinho nos convida a questionar as normas institucionais não pensadas, que, possivelmente, foram atravessadas por regimes autoritários, sendo replicadas dentro dos Institutos de Psicanálise, que explicariam certos fenômenos inibitórios do pensamento.
Nós, candidatos, propomos que as reflexões aqui apresentadas precisam ser faladas e elaboradas nas aulas da formação como um exercício habitual da formação.
COMENTÁRIOS DE NEY MARINHO SOBRE AS REFLEXÕES DE LEOPOLD NOSEK E MARCELO VIÑAR
Dada a diversidade e riqueza das perguntas e as questões sugeridas por Nosek e Marcelo em suas respostas, assim como as peculiaridades da experiência da psicanálise no Brasil, vou concentrar meus comentários em alguns tópicos. Antes um esclarecimento: a psicanálise no Brasil surgiu em três centros e momentos muito diversos: São Paulo (como herança tardia da Semana de Arte Moderna, 1922); Porto Alegre (influência dos centros já estabelecidos nos países vizinhos – Uruguai e Argentina) e no Rio de Janeiro (no após guerra, final dos anos 40 e correr dos 50), Assim, muito do que será dito terá a perspectiva do Rio de Janeiro.
A UNIVERSALIDADE – Concordo com Nosek quanto à universalidade do conhecimento científico, ou seja, um conhecimento que se oferece à crítica e que pede mais uma atitude do que um cânon ou um dogma. Contudo, quanto à possibilidade desta universalidade ser alcançada, isto já foi contestado, inclusive por nomes ilustres, como Hegel em relação aos africanos e, no nosso ambiente, quanto à capacidade de latino-americanos dirigirem a IPA. Embora tais afirmações preconceituosas sejam extemporâneas e repulsivas, vale a pena uma reflexão. Afinal, faremos parte de uma mesma humanidade, de uma mesma forma de vida? Se tomarmos arianos, judeus, árabes, negros, índios, mestiços, japoneses ou chineses como membros de um mesmo conjunto, nossas relações serão muito diversas do que se não os considerarmos assim. Talvez, essa seja uma das questões mais interessantes que a psicanálise trouxe ao pensamento ocidental, tradicionalmente dado a exclusões de toda ordem, temporais ou geográficas. Os que não falavam grego eram denominados bárbaros, ou ainda, lembremo-nos que Virgílio não pode entrar no paraíso com Dante por ser pagão, isto é, nascido antes do advento de Jesus! Vemos tudo isto como um objeto de pesquisa ainda não desenvolvida: a psicanálise transcultural.
O ENTUSIASMO – Quando Marcelo fala do encontro dos pioneiros com intelectuais entusiastas, também concordo. Principalmente, no termo delírio que coloca entre parênteses. Este entusiasmo foi imprescindível para o êxito da difusão da psicanálise na América Latina. Creio mesmo que seja um fator essencial à formação de um psicanalista. Afinal, ninguém embarca nesta aventura sem uma forte dose de generosidade e paixão. Quanto ao delírio que pode levar a atitudes perigosamente dogmáticas, deixo para um outro item.
RECEPTIVIDADE – Gostaria de chamar a atenção para uma característica que acredito não ser somente brasileira, quanto à relação com “o saber estrangeiro”. Observo no Brasil, certamente dada sua história escravagista – cerca de 400 anos – uma difundida mentalidade senhor/escravo que se manifesta, por exemplo, na subserviência das elites – mesmo as intelectuais – “ao saber estrangeiro”. Havia uma aceitação acrítica dos visitantes, curiosamente transformada num dogmatismo conservador, incorporando muitas vezes preconceitos que nem eram dos visitantes. Por exemplo, foi necessário um bom tempo para que as sociedades do Rio de Janeiro aceitassem não médicos! Entretanto, essa prática discricionária era sobretudo norte-americana nem sequer inglesa, nossa maior influência por muitos anos. Na SBPRJ somente na esteira da reforma de 1982 – já nos estertores do autoritarismo e início da redemocratização do país – foi aprovada a entrada de psicólogos, até hoje essas são as únicas profissões aceitas! Foram vários os casos de psicólogas – profissão na época tipicamente feminina – muito conceituadas e experientes, terem de fazer o curso de 6 anos de medicina para pleitearem a admissão ao instituto de formação. Como já assinalamos, a história da psicanálise no Rio de Janeiro difere da de São Paulo e Porto Alegre por sua origem. No Rio a psicanálise surge com o pós-guerra, segunda metade dos anos 40 e década de 50. Uma formação restrita a um número pequeno de estudantes, muito cara e exigente, em suma: uma especialização extremamente sofisticada, em institutos isolados das demais instituições culturais e universitárias. Importante ressaltar que a sociedade da época era, em geral, extremamente conservadora e reticente à nova ciência. Portanto, não se deve estranhar tal atividade esotérica e elitizada, ligada a uma respeitável instituição internacional (IPA), esta por sua vez altamente verticalizada, eurocêntrica e fechada em si mesma. Este processo de “insulamento” se acentuou, como veremos adiante, com os 21 anos de ditadura.
DITADURA E INSULAMENTO – As diversas ditaduras que a partir dos anos 60 assolaram a América Latina exerceram uma forte influência no desenvolvimento da Psicanálise. Pelo fato de não ter sido direta, esta repressão pode passar despercebida ou subestimada. Um ponto que ainda não foi mencionado foi o que chamo de “insulamento” da psicanálise, fenômeno mundial a partir dos anos 40 e acentuado na América Latina pelas diferentes ditaduras. Restringindo-me ao Brasil, penso que o insulamento se acentuou, isto é: um afastamento das instituições psicanalíticas do ambiente cultural e universitário até uma verdadeira condenação de qualquer atividade fora dos consultórios. Pode parecer bizarro, hoje em dia, mas durante muitos anos importantes trabalhos de renomados psicanalistas (como Danilo Perestrello, Walderêdo Ismael de Oliveira, Alcyon Baer Bahia, para citar alguns dos fundadores da SBPRJ) sobre Psicossomática, Grupos e Psicoses não eram discutidos nas sociedades psicanalíticas nem nos congressos nacionais! As mesas e reflexões multidisciplinares também não ocorriam. Ao mesmo tempo, os diferentes regimes ditatoriais que assolaram nosso continente desenvolveram uma política de afastamento cultural que afetou quer o intercâmbio entre nossos países, quer com o mundo socialista e até com a África. No caso brasileiro, ficamos também afastados de Portugal, cujo contato efetivo somente agora está sendo estabelecido através dos Congressos de Psicanálise em Língua Portuguesa, uma evolução dos congressos luso-brasileiros que se iniciaram no início deste século! Os contatos até então existentes eram apenas em caráter de iniciativas individuais. Esta política de insulamento penso ser somente compreendida à luz de uma conjuntura mais abrangente: a da guerra fria. Este período de nossa história trouxe consequências mais sérias e permanentes do que usualmente se avalia. Por exemplo: uma inibição da livre discussão interna entre os pensadores de esquerda ou de direita. Havia sempre o temor de ser acusado de traidor ou de favorecer o inimigo. Portanto, estavam dadas as condições ideais para um emburrecimento mútuo e/ou uma radicalização esterilizante. A rigor, esta dificuldade persiste não somente porque não desenvolvemos a prática do livre diálogo como a política de guerra fria não foi superada, apenas transformou-se. Como é conhecido, no momento, o Brasil vive um clima de intensa (e estéril) polarização. No último congresso brasileiro observamos isto: mesas fluentes, com ampla discussão, outras inibidas e ainda algumas vozes, isoladas, defendendo o insulamento. Este por sua vez se mostrou, historicamente, ineficaz ou desastroso. Ineficaz porque as instituições psicanalíticas reproduziam as políticas correntes na grande sociedade em sua organização, em geral, da pior maneira e mudaram quando as instituições sociais e políticas sofreram profundas modificações com a redemocratização. Desastroso quando, voltando ao tema do delírio ao qual Marcelo já se referiu, a psicanálise virou uma ideia ameaçada pelo mundo externo a tal ponto que qualquer menção pública de um desvio, falha ou mesmo um equívoco institucional era tomado como um ataque à psicanálise! Lembremo-nos do exemplo citado por Nosek em relação ao próprio Marcelo, ou, do caso Amílcar Lobo (participação de um candidato numa equipe de tortura durante a ditadura brasileira) de consequências tão graves para a psicanálise brasileira, por não ter se permitido na época a discussão pertinente. Sem dúvida, cada sociedade latino-americana deve ter o seu exemplo do insucesso do isolamento institucional, mais ou menos dramático. Evidentemente isto não é um problema meramente de nosso continente, como o premiado trabalho de Laura Verissimo mostra. De forma semelhante a guerra fria fez um considerável estrago na cultura norte-americana através do macartismo, da mesma maneira que os regimes fascistas na Europa e a própria polarização em todo o mundo.
AMÉRICA LATINA, PLURALISMO, IPA – Tanto Nosek quanto Marcelo assinalam que houve uma considerável abertura para uma variedade de correntes psicanalíticas em nosso meio latino-americano. Em nossos congressos encontramos já há vários anos uma variedade de correntes, algumas vezes de uma mesma sociedade, o que não é comum em outros continentes. Penso que se nos falta o lastro de um longo passado cultural, como o europeu, temos uma tolerância e leveza que nos permite uma liberdade de pensar a multiplicidade. Com o mesmo entusiasmo que a ideias de Freud e Melanie Klein foram recebidas, foram as de Winnicott, Bion, Lacan, Green e Kohut. Esta maior liberdade talvez seja uma especificidade do contexto latino-americano. Isto teve repercussão em nossas relações com a IPA.
Um ponto que não foi ainda mencionado se refere ao importante papel da América Latina na modernização e democratização da IPA. Acho que se pode tomar o Congresso de Roma (1989) como ponto de partida do amplo movimento de reforma da IPA ( eleição direta do Presidente, rodízio de regiões a sediar os congressos assim como de presidentes, criação do board a partir da Casa de Delegados que congregava representantes de todas as regiões da IPA, criação da IPSO, etc.). Deste modo, em 1991, tivemos o primeiro congresso da IPA na América Latina (Buenos Aires) e o primeiro presidente latino-americano: Horacio Etchegoyen, cuja gestão permitiu a realização das principais reformas democráticas e modernizantes.
O Pluralismo e a Difusão da Psicanálise se tornaram bandeiras da IPA muito em virtude da presença latino-americana, assim como o reconhecimento das análises concentradas. O que seria visto até então como uma ameaça à pureza eurocêntrica se tornou uma saída para a asfixiante crise da psicanálise. Evidentemente, esta perspectiva de difusão ainda não é algo pacífico. São recentes as resistências em levar a psicanálise à África. Neste ponto a ignorância da cultura africana juntamente com o preconceito são obstáculos que só podem ser vencidos, a nosso ver, com a experiência do convívio. Sempre chamou a nossa atenção a ausência tanto nas instituições como nos congressos latino-americanos da população de etnia indígena, tão abundante em nossos países, como a população afrodescendente no Brasil e nos Estados Unidos.
TORTURA – Aos pertinentes comentários de Nosek e Marcelo gostaria de acrescentar alguma coisa de nossa história. Durante o longo período de escravidão no Brasil, a tortura foi legal, regulamentada e pública! Tal regulamentação descia a detalhes como: o número de chibatadas que o escravo poderia receber por dia de seu dono, assim como a possibilidade de um comprador devolver o escravo adquirido, em caso de descobrir que o mesmo já tivera tentado o suicídio (seria algo como uma venda enganosa). Deste modo, não é de estranhar que persista tal prática, agora voltada para pobres, brancos ou negros, em nosso aparato policial; da mesma forma que declarações de apoio a tal prática durante a ditadura pelos atuais governantes de extrema direita, sem protesto de nossas instâncias jurídicas! Contudo, não nos iludamos: a tortura é uma prática universal, que se confunde com a história da humanidade (assim como as guerras) e que teve um longo amparo religioso. O fim último da tortura, como bem lembrou Nosek, é o “assassinato da alma”, dramaticamente descrito pelo delírio do juiz Schreber.
PSICANÁLISE, DIAS ATUAIS E FRONTEIRAS – Penso que os três itens estão interligados. A Psicanálise surgiu rompendo fronteiras – para alguns pela Interpretação dos Sonhos, para outros, pela Regra Fundamental: associação livre/atenção flutuante – conforme seja o ponto de ruptura com a tradição que se tome. Um novo campo do conhecimento pedindo uma epistemologia própria, assim como uma ontologia, ou seja, com noções como o inconsciente dinâmico e a teoria das pulsões, concepções sobre a psicologia, a vida mental, as teorias da ação e dos grupos humanos, da mesma forma que o debate sobre a cultura passaram a ter um novo interlocutor: a psicanálise. Impossível falar atualmente sobre a paz e a guerra, os direitos da mulher e da criança, o racismo, a diversidade sexual, a desigualdade social e os principais temas de nossa época sem ouvir os psicanalistas. Para isto temos que estar preparados, não para a palavra final, mas para o amplo e livre debate, num universo de incertezas e dúvidas, a partir de certos princípios consensuais. Penso que Marcelo chamou a nossa atenção para este ponto ao falar das “experiências extra-muros”. Por outro lado, desde o início do século passado, que coincide com o surgimento da Psicanálise, o mundo assistiu: o fim da belle époque, a I Guerra Mundial, a revolução socialista, o nazismo e as diversas modalidades de fascismo, a II Guerra Mundial, o holocausto, as duas bombas atômicas, a guerra fria, a revolução sexual, o Vietnã, a revolução da informática e da biologia, as incontroláveis migrações e miscigenações … muitas transformações em tão pouco tempo histórico! Este é, a meu ver, o nosso desafio: continuar pensando sem se deixar levar pela avalanche de inovações tecnológicas e suas implicações. Tenho a impressão que Nosek assinala, ao citar Gramsci, o drama atual que vivemos – o mundo ocidental e o Brasil em particular – os estertores violentos e furiosos de um velho mundo e a ausência de algo novo que lhe possa contrapor. Só nos resta a esperança, ou, como querem alguns: um ato de fé.