Entrevista a Deborah Medeiros – Sobre relações raciais e processos de subjetivação

Deborah Prado Medeiros

Graduada em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 1989.  Oficial da Marinha, atualmente na reserva, é psicoterapeuta e ministra palestras sobre relações raciais, processos de subjetivação e sobre descolonização do pensamento.

1. Poderia definir o conceito de branquitude? 

É interessante, antes de definir branquitude, mencionar que raça é um conceito relacional, construído e atualizado na modernidade. Apesar da inexistência de diferenças biológicas, raça é um dispositivo político importante na naturalização de violências e desigualdades. A branquitude pode ser definida como um lugar de privilégio nas sociedades constituídas pelo racismo. A socióloga britânica Ruth Frankenberg define a branquitude como “um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê os outros, e a si mesmo, uma posição de poder, um lugar confortável do qual se pode atribuir ao outro aquilo que não se atribui a si mesmo”. Refere-se à percepção de si mesmo como universal e dos demais como seres racializados. Branquitude implica em uma autopercepção distorcida, carregada de significados de norma, estética, cultura, etc.

2. O enfrentamento à hegemonia do poder da branquitude é uma realidade praticada na América Latina?  

Movimentos de resistência são comuns aos negros expostos à violência colonial, seja na África, nas travessias do Atlântico ou nas Américas. Enquanto existir uma política de apagamento das epistemes negras, a redução da humanidade do negro a estereótipos e a necropolitica, haverá enfrentamento e tensões em maior ou menor escala. À medida que a violência colonial se reedita, a resistência a ela assume novos contornos. 

3. Quais as semelhanças e diferenças que você apontaria entre o Brasil e o restante da América Latina no que tange à questão do racismo?

Encontramos semelhanças importantes, como a subestimação da questão de raça, assim como a existência de ideologias similares à “democracia racial”, como a do “café con leche” na Colômbia e da “razacósmica” no México – todas construídas em comparação com os Estados Unidos, vistos como o paradigma negativo. O branco, beneficiário desses discursos, é responsável por produzir estruturas racialmente hierarquizadas. Podemos afirmar que Colômbia e Brasil são os países que mais se aproximam nas articulações políticas dos afrodescendentes, o que se reflete no reconhecimento jurídico dos territórios quilombolas. No entanto, o Brasil está pelo menos 30 anos à frente dos demais se considerarmos os resultados efetivos das políticas de ação afirmativa, como as novas gerações de negros com formação universitária. Já em Cuba a discussão sobre raça tem sido silenciada, infelizmente.   

4. Como você entende a postura de negação do racismo tão presente no Brasil?  

O legado da escravidão é uma pauta que nosso país não quer discutir, pois os brancos, que constituem o grupo dominante, saíram do sistema escravista com uma herança material e simbólica extremamente positiva, fruto da apropriação de quase quatro séculos de trabalho dos negros, e essa negação perpetua suas fantasias meritocráticas, como nos mostram trabalhos recentes sobre o fenômeno da branquitude. Além disso, o Brasil implementou uma política de branqueamento com o objetivo de apagar o negro do ponto de vista biológico.  O impacto dessa política é sentido até hoje. A prosperidade dos brancos imigrantes, por exemplo, não se explica somente pelo esforço desse grupo, mas também pela discriminação imposta aos trabalhadores negros. A resistência em lidar com essa realidade se dá porque isso afeta a imagem idealizada pelos brancos sobre seus antepassados. A negação, portanto, é parte do racismo estrutural.  

5. As sociedades psicanalíticas são majoritariamente compostas por pessoas brancas. Qual a sua análise a respeito dessa situação?

Qualquer sociedade psicanalítica no Brasil funciona com dispositivos de raça e poder que garantem privilégios para o mesmo grupo racial. Não estou afirmando que exista uma política explicita para impedir o acesso de pessoas negras, mas o funcionamento “normal” é por default racista.  Conscientemente ou não, existe um pacto narcísico entre brancos nessas sociedades. As instituições enxergam-se como universais, abertas igualmente para todos, e essa é uma construção fantasiosa da branquitude. Os atendimentos sociais de negros pobres integram-se nessa construção, contribuindo para uma ilusória autoimagem racialmente democrática. Não existem evidências científicas de que esse cenário esteja relacionado ao desinteresse de jovens negros pela psicanálise e questões relacionadas à classe explicam apenas uma parte do problema. No momento em que as sociedades desejarem entender a complexidade dessas questões, certamente poderão encontrar um caminho estruturalmente diferente, em que brancos e negros possam dividir e ocupar todas as categorias que dão acesso ao topo do poder institucional. Se houver um real desejo, haverá uma solução.  

6- Observa-se que afrodescendentes raramente procuram o tratamento psicanalítico. Você pode falar um pouco a este respeito?

Quanto à procura pela psicanálise, eu diria que afrodescendentes buscam tratamentos com psicanalistas que oferecem escuta, ao invés de um comportamento defensivo, que invariavelmente constitui uma fantasia de neutralidade racial. O interessante dessa indagação é que dependendo do contexto ela poderá reforçar a ideia de que brancos e negros são igualmente responsáveis pelo perfil normativo das sociedades psicanalíticas ou reforçar a forma usual de se abordar o tema, redirecionando a questão para o próprio negro. O “problema do negro” é um discurso que frequentemente aparece quando se discute o racismo com o branco brasileiro.

Todavia, a pergunta abre espaço para abordarmos a questão do racismo institucional como sistema político-econômico atual e não somente como uma herança colonial. O racismo não é apenas um legado histórico, é também um dispositivo presente em todas as instituições brasileiras, com exceção das poucas comprometidas com práticas antirracistas. 

6. Sabemos que a invisibilidade e a dessubjetivação da pessoa negra geram adoecimentos físicos e psíquicos, traumas não elaborados, além de outras dificuldades observáveis a partir de nossa construção social cujo poder é majoritariamente branco. Na sua opinião, como a psicanálise pode ajudar na mudança desse quadro?   

O poder é hegemonicamente branco.  Ampliando a discussão, poderíamos definir o poder no Brasil como branco cis-heteronormativo, não somente por nossa construção social, mas pela forma de funcionamento do Estado. O direito, por exemplo, se apresenta como algo universal, “para todos”, mas em seu funcionamento privilegia um grupo em detrimento do outro. A economia também funciona assim: mulheres negras na base da pirâmide pagam proporcionalmente mais impostos que homens brancos ricos, por exemplo. 

No aspecto da saúde, vivemos um momento político no Brasil em que, com certa facilidade, podemos perceber que não é somente o negro que está adoecido, embora tanto sua invisibilidade quanto sua redução a estereótipos constituam um ataque violento ao senso de pertencimento social, gerando dor e exclusão. A psicanálise pode colaborar para o debate da questão racial apropriando-se de legados como o do psiquiatra Franz Fanon e o da psicanalista Neusa Santos Souza, para citar dois exemplos. Se estão realmente dispostas a ajudar (mudar), as sociedades devem fazer primeiro uma autocrítica, reconhecer sua própria branquitude, para entender as engrenagens do racismo estrutural em seu desdobramento institucional. A ausência de pessoas não brancas em espaços de prestígio e poder dentro das sociedades é um sintoma, pois reflete um mecanismo de perpetuação de privilégios. A implementação de programas para alunos negros possibilitaria, a médio prazo, que psicanalistas brancos experimentassem relações não hierarquizadas com psicanalistas negros desde a formação.  A criação de mecanismos para o ingresso sistemático de negros nos cursos de formação pode ser um caminho para fechar esse ciclo de exclusão.

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