Ao longo dos anos, grande parte da estrutura (do sistema de saúde mental do Brasil) bem planificada se viu danificada por interesses diferentes aos da saúde da população, especialmente dos de baixa renda e alta vulnerabilidade social, que em um país tão desigual economicamente como o nosso sempre sofrem as maiores consequências.
Entrevista a Bernard Miodownik.
- Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ).
- Diretor Científico FEBRAPSI 2020-2022.
- Membro Titular da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP)
1. Como você definiria saúde mental a partir do pensamento psicanalítico?
Ter espaço na mente disponível para amar e cuidar. Ser capaz de tolerar diferenças objetivas e subjetivas e a ambivalência afetiva. Em suma, um narcisismo suficientemente bom que possibilite uma relação de interdependência criativa com os outros.
2. A situação de saúde no Brasil mudou drasticamente e a crise atingiu limites impensáveis. O que você poderia nos contar sobre essa situação tão crítica e dolorosa?
O Brasil tem um dos maiores sistemas de saúde pública e gratuita do mundo, acho até que o maior, o SUS (Sistema Único de Saúde). Como é financiado pelo orçamento do Estado brasileiro, faz tremer as bases dos que pregam o liberalismo econômico. Ao longo dos anos teve muito da sua bem planejada estrutura prejudicada por interesses diversos aos da saúde da população, especialmente a de baixa renda e alta vulnerabilidade social que, num país tão desigual economicamente como o nosso sempre sofre as maiores consequências. A pandemia mostrou de forma mais evidente a desigualdade que se estrutura através da má distribuição dos recursos financeiros, das ofertas de trabalho, das condições de trabalho, dos acessos a recursos técnicos. Associado a isso o irresponsável negacionismo do governo federal que tumultuou o quanto pôde os processos de prevenção e de cuidados necessários aumentando exponencialmente o sofrimento trazido por uma pandemia, que por si só não é pouco. Apesar de todos esses entraves, o SUS é uma estrutura fabulosa que de imediato se organizou para iniciar e dar seguimento à vacinação, em que pese a até agora pouca oferta de vacinas e o boicote do governo federal, sempre ele, aos benefícios de imunizar a população do país.
3. Nesse contexto, o que se passa em relação à saúde mental da Administração Pública?Talvez com o intuito de aproveitar a atenção do meio social voltada para os reflexos da pandemia, a administração pública começou a gestar uma mudança significativa na lei da Reforma Psiquiátrica de 2001. Importante destacar que o estatuto legal dessa reforma foi o ponto de confluência de um movimento iniciado três décadas antes por uma geração de profissionais e professores universitários voltados para o tratamento humanitário dos doentes mentais. O nosso país tinha um histórico tenebroso de hospitais em que os pacientes eram largados de forma asilar em péssimas condições de higiene e de cuidados básicos associadas a tratamentos rudimentares que se limitavam a conter a agitação. Nenhuma preocupação com aspectos subjetivos, familiares e sociais desses pacientes. Havia instituições públicas com essas características e eram tantas as internações que instituições privadas passaram a receber os casos que excediam as vagas nas outras. Instituições pagas com dinheiro público, o que veio a se tornar uma grande fonte de lucros privados. Nem todas as instituições privadas agiam dessa forma, mas havia uma cultura hospitalocêntrica que predominava nos cuidados à saúde mental. Psiquiatras pioneiros começaram a mudar esse panorama ao buscarem resgatar a subjetividade perdida dos pacientes. Como exemplo, Nise da Silveira que trabalhava na recuperação dos aspectos sadios não psicóticos e criativos dos pacientes através das manifestações artísticas. Com o início da grande influência da psicanálise em nosso meio naquele período, as universidades se tornaram mais receptivas à psicanálise. Cito o Prof. Portela Nunes, um ex-presidente da FEPAL, como titular de Psiquiatria na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Houve naquele período uma transformação emocional e cultural nas leituras e na prática clínica. Comunidades terapêuticas de Maxwell Jones; Psiquiatria Social de Kaplan; Literatura anti-asilar de Laing, Cooper, Thomas Szasz, Goffman e Basaglia; Filosofia de Foucault, Deleuze e Guattari. E Freud, muito Freud. Estudantes ou profissionais iniciantes começaram a fazer análise pessoal e assim adquiriam uma maior empatia com o sofrimento psíquico dos pacientes o que levava à busca por tratamentos mais integradores. Técnicas diversas de grupo, familiares, praxiterápicas, psicoterápicas passaram a ser enfatizadas com diminuição significativa das internações hospitalares. A Lei da Reforma Psiquiátrica deu o amparo legal às propostas de desospitalização que vinham sendo aplicadas na prática diária e acrescentou outros recursos com vistas aos cuidados e à ressocialização dos pacientes diante das dificuldades inerentes aos sujeitos que sofrem com episódios psicóticos. Tudo isso certamente contrariou interesses, velhos fantasmas que procuram agora retornar das sombras.
4. Quais implicações mentais e sociais seriam observadas quando os cem estatutos da saúde mental fossem invalidados?
Tudo está incerto quanto ao que querem invalidar dos ditos cem estatutos da reforma psiquiátrica. Já se falou em partilhar os estatutos entre vários ministérios. Por exemplo, as residências assistidas seriam um trabalho para o Serviço Social que é do Ministério da Cidadania e não para a Psiquiatria que é do Ministério da Saúde. A se concretizar algo desse tipo se castraria a proposta integradora de ressocialização que é um dos pontos-chave da reforma. Aliás, os cem estatutos costumam ser citados pelos oponentes para ridicularizar a reforma psiquiátrica com alegações do tipo “com cem itens burocratiza demais atender os pacientes” e não veem como itens para dar segurança e atendimento humanizado aos pacientes. Assim como repetem à exaustão que o fato de não haver mais internação compulsória levou a um aumento da população de rua que seria constituída em sua maioria por psicóticos e dependentes de álcool ou substâncias químicas. Como se as únicas opções a essa população vulnerável, na maioria constituída por pobres e negros fossem a rua ou o asilo. Entendo que qualquer lei pode e deve receber melhorias com a experiência de trabalho de anos. Em relação à Reforma Psiquiátrica acho que há o que ser debatido e refletido por todos os interessados, profissionais envolvidos com o atendimento a esses casos graves e, também, os pacientes e familiares. Como falei acima a reforma se oficializou no estatuto legal a partir de uma prática contínua que foi se modificando e de uma mudança nas concepções sobre saúde e doença mental ao longo do tempo. Uma proposta de alteração de lei sobre um tema que atinge uma parcela significativa da população vinda de um grupo restrito sem um debate amplo anterior não condiz com o atual momento de transparência que a sociedade busca.
5. Você considera algumas estratégias possíveis na abordagem psicanalítica das necessidades atuais do Brasil? De que forma as sociedades membros da FEPAL poderiam contribuir?
Um exemplo recente dessa contribuição foram as “Redes solidárias” que as federadas filiadas à FEBRAPSI organizaram para oferecer atendimento emergencial online e gratuito durante a pandemia. Foi uma iniciativa bem sucedida que ajudou a um grande número de pessoas que puderam ter uma escuta às imensas angústias presentes durante a pandemia. Nos mesmos moldes está sendo oferecido apoio emocional por nossos membros através do “SOS Amazonas”, região brasileira que passa por uma crise grave para atender pacientes com COVID-19. Esse projeto tem uma parceria com os Médicos sem Fronteiras. Vários membros de nossas federadas trabalharam ou trabalham em instituições públicas, universidades ou organizações não governamentais. Todos certamente têm relatos sobre o valor da escuta psicanalítica quando transformada em palavras de ajuda emocional e com poder de fazer pensar, mesmo que fora do enquadre clássico. Sempre há um espaço mental a ser fertilizado pela psicanálise. No momento atual do país e do mundo a psicanálise se faz mais necessária. A polarização política cada vez mais intensa representa e simultaneamente leva a dificuldades de lidar com diferenças e com a ambivalência afetiva, já que predomina o ódio. Diferente do que mencionei acima sobre a minha definição de saúde mental nesses momentos se enaltecem os narcisismos das pequenas diferenças e os narcisismos malignos, o que não costuma acabar em boas soluções. Uma importante contribuição é debater com frequência essas questões, o que é feito na FEBRAPSI no Observatório Psicanalítico que é um grupo de discussão de textos relacionados a acontecimentos culturais e sociais com repercussões psicanalíticas. As estratégias possíveis certamente terão um espaço de debate no próximo Congresso Brasileiro de Psicanálise a se realizar em março/2022 com o tema “Laços: o Eu e o mundo”.
6. Que abordagens são oferecidas à comunidade na sociedade psicanalítica a que você pertence?
Na Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ) temos uma Clínica Social que atende psicanálise e psicoterapia analítica a preços reduzidos com grande procura. Em parceria com a Rádio MEC estatal, há anos é realizado um programa de rádio “Escutar e pensar” com temas psicanalíticos direcionados para um público leigo através de leitura de textos e de esquetes dramatizados. Esse projeto também teve o seu formato e nome adotado pela Sociedade Psicanalítica de Fortaleza e foi premiado no último Congresso da IPA. Outra abordagem é o “Projeto Travessia” que trabalha com crianças e adolescentes vulneráveis em comunidades carentes marcadas pela violência. Projeto também premiado no último Congresso da IPA. Recente a SBPRJ aprovou a criação de cotas sociais para profissionais negros, indígenas e com status de imigrantes que tenham carências econômicas que os impeçam de realizar uma formação psicanalítica.