Conexão FEPAL #30

Há diversos pontos de partida possíveis para analisarmos a História da América Latina e suas reverberações na atualidade. Na presente edição de Conexão FEPAL o entrelaçamento de imagens e textos se deu impulsionado pelo mal-estar da fibra estrutural que continua a tecer os confrontos nas relações humanas em nosso continente: o racismo.


Diferente do que acontece na maioria das instituições psicanalíticas, o campo da arte tem desconstruído narrativas eurocêntricas e aberto espaço para trabalhos de artistas indígenas, LGBTQIA+ e afrodescendentes. Muitos desses trabalhos contemporâneos confrontam a hegemonia branca, expõem a violência do racismo e dão ênfase à malha multifacetada, política e crítica dos movimentos organizados na luta por direitos. Para a capa dessa edição de Conexão FEPAL convidamos o artista rOnA (instagram: @ronaartista) para contribuir com seu trabalho. “No TerReiRO dE Yiá” é uma pintura desenvolvida com técnica mista: tinta acrílica, massa acrílica, lápis carvão e lápis pastel. Na obra observamos cores diversas, tons dourados e prateados, várias cabeças e olhares em soslaio representados. rOnA é um multiartista autodidata, e em seu desenvolvimento poético faz uma apropriação simbólica de festejos e religiosidades, como a Folia de Reis, o carnaval e o candomblé. Também elabora suas criações a partir de referenciais poéticos como oceanos e sonhos, sons e silêncios, infâncias e encantamentos. Inquieto, costuma dizer: “Arte pra mim é ação!”.


Se a ação dá a tônica do fazer artístico, em nosso meio psicanalítico ainda é incipiente o reconhecimento do legado cultural africano e indígena. Estamos ainda impregnados da perspectiva colonial universal branca? Estamos cegos para a composição de nossas histórias plurais?

Nossa proposta com essa edição é pensarmos o racismo, sobretudo como o racismo se manifesta nas instituições psicanalíticas e quais ações antirracistas estão ao nosso alcance implementar. Nos atuais debates acerca do tema aponta-se para a necessária tomada de consciência, por parte dos brancos, de seus privilégios e a adoção de posturas responsáveis e de reparação após séculos de exploração, violência e extermínio de negros e indígenas em nosso continente. As sequelas colonialistas e escravocratas estão diariamente presentes no racismo estrutural e deságuam, inevitavelmente, nas sociedades psicanalíticas, compostas por uma esmagadora maioria branca.


Como psicanalistas, não podemos permanecer imóveis ou alheios à violência do racismo que devasta a vida e a dignidade de muitos seres humanos; por isso, decidimos abrir esta edição com o manifesto do Conselho Diretor (publicado em maio) em repúdio aos graves acontecimentos e às manifestações racistas que ocorreram recentemente. Quatro psicanalistas compartilham suas reflexões em Perspectivas. Wania Cidade, atual presidente da FEPAL, traz a indagação: ”Psicanálise e Antirracismo: aliados?” Seu texto instiga pensarmos o movimento da clínica psicanalítica e a complexidade do racismo, do que se manifesta violentamente e o que fica encoberto, “atuando insidiosamente para manter a ordem social imutável”. O incômodo e as reações de autodefesa dos brancos quando o assunto racismo está em ênfase reforçam a urgência de que essa realidade seja discutida nas instituições para que práticas antirracistas sejam efetivadas. Para Paola Amendoeira, pensar como psicanalistas sobre esse “sofrimento psíquico específico resultante de uma cultura estruturalmente racista” implica ações concretas, como demonstrado no compromisso assumido pela Comissão de Estudos Psicanalíticos sobre Racismo e Práticas Antirracistas. A partir do coração dessa experiência grupal, analisa as vivências suscitadas; daí o sugestivo título de seu trabalho: “O racismo, nossas Instituições e (in)quietas-ações”. Por outro lado, Andrés Gautier Hirsch em seu artigo “Comentários sobre a obra de Carlos Macusaya: ‘En Bolivia no hay racismo, indios de mierda. Apuntes sobre un problema negado'”, propõe uma leitura de alguns dos eventos sociais ocorridos na Bolívia e no Peru nos últimos anos. Para isso, utiliza a ideia do “sujeito racializado” e o conceito psicanalítico de negação. Em “Colonização em América Latina”, María del Carmen Cayupán também destaca esse conceito para se referir ao negacionismo que opera na população em relação a seus próprios traços de identidade, ligados aos povos originais.

“Um convite para trazer uma reflexão sobre racismo, sempre me leva a perguntar sobre o que se espera ouvir a este respeito”, nos diz Sônia Beatriz dos Santos, antropóloga, professora, analista em formação do Instituto de Formação Psicanalítica da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ) e nossa convidada para contribuir em Interseções. Seu texto, “Reflexões sobre Racismo e Psicanálise”, instiga um retrospecto da história psicanalítica com destaque para as contribuições de Sigmund Freud e Juliano Moreira em uma perspectiva racializada. A autora problematiza a tensão atual que permeia o debate sobre o racismo entre os psicanalistas. Observa “a dificuldade de colegas de suportar, escutar, elaborar e conviver com o fato de ser atingido(a) pelo mal-estar e horror que o racismo instaura em nossas mentes e corpos.” Todavia, as possíveis alianças entre brancos e negros na luta antirracista passam pela suportabilidade desse mal-estar e reconhecimento por parte dos brancos de suas práticas racistas, para então desenvolverem ações de mudança.

Em Conversações, Diana Zac, atual Diretora de Comunidade e Cultura da FEPAL, em diálogo com Alicia Ángeles Ramírez, nos conta como esta diretoria tem trabalhado em diferentes territórios da América Latina. Pensar Comunidade e Cultura na América Latina é adentrar em um locus de criatividade, polifonia e histórias plurais. Esperamos que apreciem a conversa.

Por fim, em Marcadores de Calibán, Alicia Briseño nos traz uma longa lista de autores e artigos sobre o assunto racismo, publicados em várias edições de nossa Revista Latino-americana de Psicanálise.

Encerramos nosso editorial com o convite à leitura da presente edição. Desejamos que este Conexão FEPAL chegue aos leitores de nossas diversas Sociedades, promova o diálogo, amplie nossa escuta, enriqueça nosso pensamento e ajude a promover ações de inclusão social. As inúmeras histórias que compõem a trajetória latino-americana, ainda que tantas vezes mutiladas, fraturadas, apagadas pelo colonialismo, exigem, hoje, novas narrativas. Nesse sentido, Wania Cidade destaca em seu texto o convite para o curso de longa duração que terá abertura com uma Webinar no dia 12 de agosto: “Uma questão de cor: decolonialidade e psicanálise”, coordenado por Maria José Tavares, membro da Coordenação Científica da FEPAL. São vários pontos de partida em ação, para, nas palavras de Wania, “iniciarmos a construção desta demorada aliança”.

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