Semear segue com a belíssima contribuição da Psicanalista Argentina Nora Koremblit de Vinacur. Preparamos duas publicações para compartilhar as ideias da autora com nossos leitores. A primeira parte pode ser acessada na postagem anterior a esta e nela Nora trouxe suas observações diante as diferentes etapas durante o período de quarentena em seu país. Hoje ela seguirá desenvolvendo suas ideias a respeito dos afetos despertados neste período desde distintos pontos de vista, bem como das questões evidenciadas pela desigualdade social que marcam a América Latina.
As Famílias nos Novos Contextos* (continuação)
Lic. Nora Koremblit de Vinacur
Associação Psicanalítica da Argentina
Psicóloga, Psicanalista Membro Titular com Função Didática APA e Especialista em Crianças e Adolescentes
Insisto que se este período teve de reconhecer um afeto, esse foi o de desespero e confusão para todos igualmente: pais, professores, crianças, alunos, gestores e funcionários. É necessário também considerar a enorme dificuldade para as crianças do isolamento de seus amigos e avós, os quais devem receber cuidados especiais porque são mais vulneráveis.
Tudo isso cousou uma enorme demanda nos adultos da família que de repente descobriram que além de trabalhar tinham que serem professores, faxineiros, cozinheiros para toda a família e ainda tentar manter a calma possível aos olhos de seus filhos pequenos pelo fato de serem considerados por esses suas principais referências. Para esses adultos tornou-se difícil expressar angústia ou preocupação.
Tenho observado certos comportamentos regressivos em crianças que já haviam adquirido certos hábitos, como o treinamento para ir ao banheiro, bem como terrores noturnos e pesadelos em crianças mais velhas.
Existem situações muito preocupantes que não devem deixar de serem consideradas como violência doméstica ou denúncia de abuso infantil. Curiosamente, não estão suficientemente registradas, pois na maioria dos casos e em condições normais, os agentes que se reportam são profissionais de saúde, pediatras, escolas ou clubes de bairro aos quais atualmente não frequentam. Isso não significa que essas situações não estejam ocorrendo.
Não posso deixar de referir que as desigualdades a que me referi nos levam a considerar que não é a mesma coisa fazer este confinamento em setores de bons recursos com habitação abastada – serviços de internet e dispositivos eletrônicos para todos – do que para os setores mais vulneráveis. Nestes contextos, faltam condições básicas como falta de água e gás em condições extremas, tornando a possibilidade de isolamento familiar extremamente perigosa e insalubre. Em condições intermediárias, percebeu-se que essas medidas não poderiam ser tomadas para toda a população da mesma forma.
Tudo isso me permite refletir sobre como podemos tomar consciência abruptamente de onde estamos, de onde estivemos nos diferentes aspectos institucionais.
Do ponto de vista do familiar, ouvi dizer que esta pandemia permitiu que pais e filhos se olhassem com certas perspectivas desconhecidas, com surpresa e com desejo de modificação. Do ponto de vista da escola, Francesco Tonucci, famoso pedagogo italiano, propõe … “colocar os trabalhos de casa em quarentena e fazer da casa um laboratório …” Afirma que é um bom momento para criar uma nova escola. Dos sistemas de saúde, vimos como ruíram os grandes países que sempre nos serviram de exemplo, pois nunca foram feitos investimentos adequados nesta área e acabamos por ver as verdadeiras desigualdades.
Octavio Fernández Moujan, psicanalista argentino, sempre afirma que toda crise é uma oportunidade de mudança. Eu me pergunto: saberemos aproveitar essa oportunidade? Ou ficamos no lamento melancólico do que não podemos, do que perdemos ou da fantasia de voltar ao mundo anterior que claramente não será o mesmo.
É importante ser capaz de parar e pensar por um momento. O trabalho familiar com todas as ferramentas que a psicanálise nos oferece nos permite ajudar e compreender essa convulsão global pela qual todos atravessados.
* Texto apresentado previamente em Jornada da Sociedade Colombiana de Psicanálise – Socolpsi – e adaptado para publicação na Coluna Semear.