Capa do livro “A arte de tratar – por uma psicanálise estética”
Celso Gutfreind, psicanalista de crianças e adultos, membro titular com funções didáticas pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, doutor em psicologia pela Universidade de Paris, escritor de vários livros, entre os quais A arte de tratar – por uma psicanálise estética (Artmed, 2019).
Entrevistado por Tiago Mussi (tiagofrancoh@gmail.com)
Qual a relação entre literatura e psicanálise?
A relação entre literatura e psicanálise é imensa, acho que só podemos falar nas relações, assim no plural, abertas e, talvez, intermináveis, como a psicanálise. A partir da minha experiência como escritor e psicanalista, posso selecionar algumas possibilidades e tentar sintetizá-las:
– Conforme assinalam na excelente introdução para esta entrevista, a literatura está presente ao longo de toda a obra do Freud. Era um apaixonado por ela, leitor contumaz e convicto, e sabemos que a arte literária dividia com a escultura e a pintura as suas preferências, em termos de arte. Isso seria tão somente uma curiosidade histórica ou pessoal, se não soubéssemos também que carros-chefes da psicanálise encontram a sua referência nos textos de Freud, clássicos ou não. Como sistematizaria o Complexo de Édipo sem Sófocles? E a Interpretação dos Sonhos sem Shakespeare ou Goethe ou Jensen?
Neste sentido, podemos afirmar que, sem a literatura, a obra de Freud não teria existido, pelo menos não dessa maneira, pois é difícil imaginar que ele fosse buscar exemplos, imagens, analogias fundamentais para a sua teoria em outra parte.
No embalo, há consenso de que a sua escrita, variada, heterogênea e multiforme pode ser considerada igualmente literária (o prêmio Goethe), por mais que seja ensaística e científica (não entraremos, neste breve espaço, na questão do gênero de seus textos).
Mas as relações não se esgotam. Com origem em Freud e aprofundado em pós-freudianos como Bion, acreditamos, hoje, que analisar é dominar a arte da palavra. Não me refiro à “talking cure”, ideia presente já nos estudos iniciais sobre a histeria, mas à necessidade de contarmos com interpretações abertas, não saturadas, ao melhor estilo do que apontamos como uma boa literatura, uma obra aberta, como bem definiu Umberto Eco. E uma boa análise.
A análise busca a representação verbal e, como bem exemplificaram com Borges, a chegada à palavra, objetivo em comum da psicanálise e da literatura, significa a chegada à ficção, com toda a ambiguidade que lhe é inerente.
Mas, aqui, em torno da palavra, poderíamos continuar o assunto dessas relações para sempre.
Como a literatura de ficção influencia no seu trabalho enquanto psicanalista?
A influência da literatura de ficção no meu trabalho de psicanalista é enorme e, como na pergunta anterior, vem desmembrada em muitas possibilidades e, talvez, interminável igualmente.
Li e leio muita ficção, fui forjado e constituído pela arte, a literatura em especial e não seria um psicanalista se não houvesse essa parte importante em minha história. Costumo pensar e dizer que a psicanálise foi o que de mais próximo encontrei da literatura, eu a vejo como literária, pois seu corpus teórico está em textos bem escritos (Freud) e, como vimos, sua prática envolve arsenais análogos ao da literatura. Acho que foi a forma mais literária que encontrei de “ganhar” a vida.
Não fosse eu, desde sempre, um neurótico de razoável sofrimento psíquico e saúde para ter o desejo de compreendê-lo, eu me dedicaria tão somente à literatura e não juntaria com a psicanálise, como faço, por esses motivos, talvez.
Mas há mais: é frequente que, quando penso em um paciente e tento compreendê-lo, me ocorram exemplos literários, um personagem de Machado aqui, um conto de Dalton Trevisan ali, um poema de Fernando Pessoa acolá e assim por diante.
Mas há mais: a minha pesquisa de doutorado, em psicanálise, foi clínica, inventando uma técnica de utilização do conto infantil (ficção) para tratar crianças separadas de seus pais e vivendo em abrigos na França. O mediador, ali, não foi o desenho ou o jogo, como costuma ser. Foi o conto, a ficção, a metáfora literária, que se mostrou muito efetiva para que aquelas crianças pudessem expressar, dizer, contar e elaborar o seu sofrimento psíquico. Ou seja, analisar-se. E, como, ainda hoje, tantos anos depois, utilizo muito o conto infantil na minha clínica com crianças, posso dizer que a ficção me acompanha no dia-a-dia do meu trabalho.
Que obra ou autor de literatura mais o inspirou a ser criativo em seu trabalho?
Difícil, senão impossível, responder a essa pergunta. Sou um leitor compulsivo, sempre li e leio muito e seria uma injustiça com a minha história de leitor apontar, aqui, um só caminho ou referência. Freud, por exemplo. Quando comecei a ler Freud diretamente, ainda na faculdade, não me apaixonei pelo seu texto. Um pouco pela tradução, outro porque não estava acostumado a ler ensaios. Eu lia ficção. À medida que fui relendo, encontrei o Freud mais literário que me remeteu aos autores que eu já lia, como Shakespeare e Goethe. Foi então que me apaixonei por ler o Freud, então posso dizer que ele me inspira muito, mas a partir desses escritores, entre tantos outros.
Sou realmente apaixonado pelos contos de fada, recolhidos pelos irmãos Grimm, ou por Perrault, ou escritos pelo Andersen, o que também me fez seguir aquele caminho para o doutorado. Até hoje os leio e os releio, porque me inspiram a tentar encontrar metáforas para os meus sofrimentos e os de meus pacientes.
A lista, repito, seria interminável, mas não posso terminá-la sem deixar de dizer que sou poeta, muito antes de me tornar psicanalista. Sou poeta desde a adolescência e psicanalista há tão somente duas décadas. Ler os poetas me inspirou a me tornar um deles e, sobretudo, a me tornar um deles com a psicanálise. Por isso autores como Ogden, Winnicott e Pontalis, entre tantos outros, também me inspiram.
Acredito que eles entenderam que a prosa de uma interpretação e de uma psicanálise só terá força se for impregnada pela poesia.