34ºCongresso FEPAL Transitoriedades / Incertezas: Um convite e uma reflexão

Publicado originalmente no Observatório Psicanalítico, da FEBRAPSI – OP 329/2022

34º.Congresso FEPAL. Transitoriedades / Incertezas:  Um convite e uma reflexão 

Por Samantha Nigri – SBPRJ 

A leitura da coluna semanal de José Eduardo Agualusa no O Globo, do Rio, tem para mim, o mesmo valor que um almoço entre amigos. Imagino que não sou a única que sente isso, visto que o escritor angolano nos acolhe, nos recebe em suas linhas como se estas fossem a sua própria casa, e dependendo de como serve seu banquete de palavras, saímos dele: melhores, piores, revirados ou, na melhor das hipóteses, pensativos.

“Só faltam os dragões”
Jóse Eduardo Agualusa
O Globo, 30.4.2022 

No dia 30 de abril deste ano, que parece não acabar nunca de nos machucar, Agualusa escreve sobre como, por vezes, nesses tempos, sente-se como expectador de um filme B cujo roteirista coloca todas as catástrofes possíveis num só enredo, algo do tipo: pandemia, tornados, dinossauros, invasão de ETs, ameaça de uma nova guerra mundial, guerra climática, recrudescência do fascismo…e… dragões …algo que até o maior amante dos filmes B diria: basta, isso aí já é demais! 

A digestão diária dos desacontecimentos de cada instante me remeteu a este potente espaço do OP e ao desejo de marcar alguns pontos no intuito de ressaltar, por aqui, o convite para o congresso da FEPAL que acontecerá on-line entre os dias 20 e 24 de setembro próximo. 

“O principal tema do Congresso (em setembro de 1918) são as consequências psíquicas da guerra e as possibilidades terapêuticas que a psicanálise pode oferecer às neuroses de guerra.” From “Cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros escritos”  By Sigmund Freud, Maria Rita Salzano Moraes. Ed Autentica.

No prefácio de Gilson Lannini Jésus Santiago no volume que reúne os principais textos freudianos sobre cultura, sociedade e religião (editora Autentica), o autor chama a atenção para o ambiente em que aconteceu o V congresso Internacional de Psicanálise, em setembro de 1918. 

Este ocorreu um mês e pouco antes do acordo que encerraria a Primeira Guerra Mundial, acontecimento que abalou como um sismo cataclísmico o status quo de uma era e que marcou a história da psicanálise que estava a construir-se. Naquele congresso, em sua conferência “Caminhos da terapia psicanalítica”, em que estavam presentes representantes dos governos da Alemanha, da Áustria e da Hungria, Freud deixou clara a sua proposta em rever “…nossa posição na sociedade humana, para observar em que direções ela poderia se desenvolver (Freud, 2016, p.191). Desde esse marco na história, acompanhamos a reflexão psicanalítica sobre o que ameaça a existência da humanidade, a saber, para além da doença e dos fenômenos climáticos, a força da ruptura dos laços sociais e a incerteza do futuro… 

Vamos dar um salto de 1918 para 2022:
“Meu século, minha fera, quem poderá
olhar-te dentro dos olhos
e soldar com o sangue
as vértebras de dois séculos?”

Primeiro verso da poesia de Osip Mandel’stam,1923, citado por Giorgio Agamben, in “O que é o Contemporâneo?” e outros ensaios, Editora Argos,2009

O 34º. congresso da FEPAL, com o tema Transitoriedades / Incertezas, está sendo preparado em condições totalmente desconhecidas por diretorias passadas. Eu ousaria dizer que estamos mais próximos dos congressos pré e pós grandes guerras do que os que antecederam as gerações de analistas formados após a década de 50 do século XX. 

Se o desamparo humano é um dos temas centrais da obra freudiana, eis que estamos em tempos em que a carne e a alma são atravessadas e expostas intensamente por tal condição. Estamos em guerras, colapsos e mudanças… 

É nesse clima, de forte convocação aos desafios e aos desenvolvimentos do ofício psicanalítico, que percebo o OP, espaço que oferece na escritura dos colegas uma oficina, a tessitura reflexiva que nos move a ler, pensar, doer e sonhar a vida, em nosso tempo, como psicanalistas e cidadãos, onde só faltam os dragões para nos deixar incrédulos de vez. 

E os Congressos? Onde e como se encontram esses dispositivos enquanto estamos nesse trânsito entre o mundo pré e pós pandemia? Qual o sentido desses espaços outrora tão “conhecidos” em formato já pré fabricado? 

A potencialização do desamparo está longe de ser novidade na história da psicanálise, entretanto, isso não nos protege de sermos atingidos e de reagirmos a ela. Estamos frequentemente a correr da dura realidade de que a matéria prima e o nosso universo a perseguir é aquele estranho, monstruoso e fantástico sistema Inconsciente… Aquele que nos impele e nos difere dos outros tantos animais habitantes desse planeta. Sabemos, mas queremos esquecer que as fragilidades e as perdas, sejam elas quais forem, fazem-nos sentir e agir de forma peculiar. Movimentam e mobilizam as entranhas da nossa humanidade. 

Forma peculiar que é o motor da engenhoca e da aventura humana na Terra e que Freud pôde refletir e escrever a respeito nos anos que antecederam e que sucederam o texto Sobre a transitoriedade (1916). Texto que inspirou o tema Transitoriedades/Incertezas e que dialoga com a implicação visceral dos psicanalistas com o atual estado do mundo em que vivemos. Não foi à toa que esse título foi o escolhido pela imensa maioria das instituições que compõem a Federação latino-americana de psicanálise. 

Já no Congresso anterior da FEPAL com o tema Fronteiras, a equipe coordenada por Cristina Fulco, precisou adaptar às pressas um Congresso para a modalidade virtual. Os Congressos da IPA e da FEBRAPSI também atravessaram essa turbulência. Foram diretorias que começaram, como na citação acima, na vértebra de um mundo sem a Covid-19 e que foram arremessadas para a vértebra empesteada. 

A atual diretoria, conduzida por Andrés Gaitán, assumiu a nau da FEPAL em meio às perdas, ameaças, turbulências e vicissitudes de um mundo que já convulsionava antes da pandemia e que com a sua virulenta, densa e mutante instalação, foi finalmente arrebatado, como escreveu Agamben, pelo “século-fera”. 

Unindo Agamben e Agualusa no mesmo almoço de domingo, fantasio que um dos dois chamaria o século fera XXI, de Século Dragão. 

Ainda com Agamben à mesa, elenco mais dois pontos que merecem a presença brasileira nos corredores virtuais do congresso da FEPAL. Refiro-me ao que ele denomina sobre o que é ser contemporâneo, e a sua relação singular com o seu próprio tempo, uma relação que insere o sujeito e, ao mesmo tempo, o torna capaz de um distanciamento que promove uma incongruência, um desconcerto e uma sensação de estar fora ou em tempos diferentes. 

Como Freud chama a atenção em 1918, precisamos marcar esses dispositivos como são os Congressos, com a capacidade de olhar para o nosso tempo, a partir deste eixo contemporâneo. E creio que a psicanálise brasileira está cada vez mais desconsertadamente inserida em seu tempo. E este movimento, quando permeia e deixa-se permear pelo contato com os colegas latino americanos, é fértil e em sua essência extremamente psicanalítico. 

O primeiro ponto é valorar o trabalho iniciado, mesmo que ainda uma semente plantada e a germinar, do reconhecimento e real exercício do bilinguismo do português e do espanhol em nossa federação. Sabemos que esse bilinguismo, apesar de ser estatutário, não era exercido, nem de longe, da forma como uma federação psicanalítica precisa encaminhá-lo. 

O projeto Ponte entre Línguas foi criado nessa gestão com o intuito de trabalhar e promover um bilinguismo profundo e ampliado, que procura desvelar e processar os efeitos de um bilinguismo colonial onde, neste caso, os brasileiros buscavam no portunhol um contato para reverenciar o espanhol, língua dominante perante o português. A ideia de criar cursos de espanhol para brasileiros e de português para hispânicos, oferecidos numa federação psicanalítica, não se restringiu à montagem de “cursinhos” de línguas, tampouco na inserção da tradução simultânea em todos os webnários e reuniões importantes da FEPAL. Isso por si só não preenche o significado, que possui para um psicanalista, o deixar-se permear pela cultura e idioma estrangeiro, o reconhecimento do encontro e do desencontro do outro e as vicissitudes que esse tipo de (des)encontro suscita. Os desdobramentos do impacto dessa experiência, falaremos em outros espaços, inclusive no próprio congresso. 

Pois eis que chego no segundo ponto para fechar esse convite que se propôs a ser mais do que um “Oi pessoal do OP, venham ao Congresso da FEPAL 2022!”. Para todos, mas especialmente para nós que estamos na atual gestão − e aproveito para agradecer aqui e parabenizar os colegas brasileiros que trabalharam tanto, em tempos tão difíceis de levar o trabalho psicanalítico institucional − participar e testemunhar a cerimônia de posse de Wania Cidade e sua nova equipe é um motivo a mais, um estímulo para estarmos no congresso. Estímulo gerado pelo fato que a nova diretoria será conduzida por uma psicanalista negra, que possui em sua trajetória o percurso de desenvolver e promover o desvelamento da voz e da realidade da questão racial não só em nosso país, mas na psicanálise brasileira. O que isso representa na pessoa que é Wania, que possui um pensamento e uma prática psicanalíticas extremamente fortes, tem muito a contribuir e também a receber do contato mais poroso, fluido e intenso com os colegas de toda a América Latina, dando continuidade à marca da psicanálise em nosso continente, aquela que apesar dos pesares faz jus a “Aquilo que herdastes dos teus pais, trabalha para fazer teu”…

Sabemos que nada disso é fácil. Sabemos que com dragões a nos sobrevoarem tudo ainda fica mais ameaçador, e por isso vale a pena persistir na troca, vale a pena ler e escutar a todos nós, continuarmos  juntos. 

Espero vocês no Congresso Transitoriedades / Incertezas,

Um abraço caloroso, apesar do fogo, apesar dos tiros, apesar dos gritos…

Categoria: Instituição Psicanalítica
Palavras Chave: Transitoriedade, Congresso FEPAL, Bilinguismo, Desamparo, Contemporâneo
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

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Categoria: Instituição psicanalítica

Tags: Bilinguismo | congresso Fepal | Contemporâneo | desamparo | Transitoriedade

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