Psychoanalytical Trainning: Ane Marlise Port Rodrigues (SBPdePA)

1. Gostaríamos que nos falasse de seu trabalho. Conte-nos como o desenvolveu.

Esse trabalho sobre “Liberdade e singularidade na transmissão da psicanálise – interminável desafio” surgiu da necessidade de colocar em texto uma série de indagações e inquietações que me acompanhavam desde que assumi a coordenação da Comissão de Seminários do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA), na gestão 2016/2017.

Neste período, tivemos o “Ciclo Pensando a Formação em Tempos de Mudanças” com convidados de São Paulo, Rio de Janeiro, Buenos Aires e Montevideo.  As contribuições dos colegas de fora da SBPdePA, acrescidas dos debates com colegas da casa, foram criando um terreno bastante fértil para o meu interesse por essa temática. Leituras de vários autores latino-americanos também foram importantes para o desenvolvimento do meu pensamento.

A área de seminários vinha sofrendo modificações desde 2002. A primeira turma de candidatos (denominados Membros do Instituto na Brasileira) inicia no ano de 1995 no esquema tradicional: formato anual; início em março; turmas, ordem e cronologia dos seminários fixos; temas predefinidos e seminários todos obrigatórios. Cabia aos membros titulares com função didática a coordenação dos seminários.

Gradualmente, foram ocorrendo mudanças: o candidato decidia quais e quantos seminários faria e em qual semestre começaria (semestralidade); todos os membros associados e titulares poderiam ser coordenadores de seminários e criar o tema e a bibliografia do seminário proposto (liberdade de cátedra). Penso que a origem variada dos 17 fundadores da Brasileira – APA, APdeBA, SPPA, SBPSP, SBPRJ – jogou sua parte nas possibilidades de mudanças, pois cada um trazia diferentes modelos de formação.

Após reuniões e assembleias, fica determinado que de um total de 32 seminários, é obrigatório que 50% seja do Eixo Freud e 50% seja dos demais Eixos (desenvolvimentos pós-freudianos e seminários clínicos). Trata-se aqui da criação de um enquadre pelo qual o Instituto é responsável e que fornece as bordas para conter e abarcar a liberdade e a singularidade dos candidatos e dos coordenadores de seminários. Nessas reuniões ocorre um exercício de democracia interna onde o Instituto é porta-voz de um modelo de formação, mas também dá a voz às várias instâncias do grupo institucional.

A criação conjunta da planilha de seminários a cada semestre implicava reuniões do Instituto com os candidatos e com os coordenadores, em diferentes momentos, até alcançarmos seu formato finalizado. Esse processo não era livre de angústias e conflitos, pois o trabalho em grupo, e com psicanalistas não é diferente, sempre é desafiador e traz as dificuldades próprias das áreas narcísicas de cada um e dos efeitos das presenças e suas diferenças. Portanto, outra fonte para a escrita desse trabalho foi a angústia ao ter de lidar a cada semestre com a criação de algo desconhecido, novo, e em grupo.

Considero o Instituto como um organismo vivo, em constante revisão e evolução, mas nunca alcançando um produto acabado ou completo, pois seria sua estagnação.

A concepção de um quarto eixo na formação analítica, além do clássico tripé, já me interessava desde que fui presidente da associação de candidatos. Naquela época, em 2006, recebemos da FEPAL o prêmio para candidatos pelo trabalho “O candidato e a instituição psicanalítica: um quarto eixo na formação analítica?”. Como atual diretora do Instituto (gestão 2018/2019), as questões das vivências a partir da vida institucional e suas implicações na formação analítica trabalharam em meu sentir e pensar, tendo novos desdobramentos.

2. Qual a especificidade da formação psicanalítica na América Latina?

Conforme já referido por vários colegas: a pluralidade teórico-clínica e uma abertura a acolher o novo; a capacidade de não se submeter a uma ortodoxia teórica, levando a uma interação entre diferentes orientações teóricas e à construção de um idioma próprio; a busca pela liberdade criativa; o entusiasmo e a paixão que fazem brotar grandes aportes teóricos e clínicos à psicanálise; um espaço mais democrático de participação para os candidatos em nossos Institutos e nas Sociedades.

A miscigenação de diversas etnias e origens cria na América Latina um território de grande fertilidade criativa em todas as áreas da cultura, onde se inclui a psicanálise, considerada mestiça. Somos múltiplos e cada Instituto tem sua singularidade.

A psicanálise latino-americana tem grande produção no campo da infância e adolescência, da observação de bêbes, do transgeracional, do vincular (incluindo casal e família), do estudo das sexualidades (que desvela os preconceitos dos analistas), da psicanálise extra-muros ou extensa, dos tratamentos à distância e do pensar o papel da instituição na formação de seus analistas.

3. Qual a importância do intercâmbio cultural na formação?

Cada sociedade psicanalítica desenvolve uma cultura própria e esta é percebida por quem vem de fora. As diferenças se fazem notar no clima institucional, no modelo de formação, nas teorias escolhidas para os seminários, nas configurações mais ou menos democráticas quanto à circulação do poder na instituição.

Sabe-se que mesmo Institutos que adotam o mesmo modelo (Eitingon, Francês ou Uruguaio), o aplicam com variáveis determinadas pelo grupo. Essas diferentes culturas e formas de transmitir a psicanálise são riquezas da IPA (além da pluralidade teórica) e não um problema a ser eliminado. Essas singularidades demonstram não haver uma maneira única, ou uma “verdadeira psicanálise”, existindo múltiplas e válidas formas de transmissão que são construídas pelo grupo institucional ao longo do tempo.

Conhecer diferentes culturas psicanalíticas desenvolve a capacidade de nos ouvirmos uns aos outros, de sermos receptivos ao diferente, de seguirmos pensando e nos desaloja de um lugar de suposto saber.

4. Vivemos um momento turbulento na América Latina e no mundo. Para você, como devemos preparar os jovens analistas para os novos desafios?

 Nosek, em entrevista anterior (31/07/19), coloca que nossas instituições psicanalíticas têm se posicionado em defesa dos valores humanistas e democráticos, que são condições de sua existência. Também refere que nos encontramos num retrocesso onde o pensamento se curva ao dogma.

As instituições psicanalíticas têm evoluído no sentido de não se colocar dentro de uma bolha distante do mundo a sua volta. A psicanálise extra-muros enriquece a sociedade e a psicanálise, abrindo novas frentes de trabalho ao psicanalista.

O pensamento religioso e fanático que se apoia em dogmas e no autoritarismo também pode se revelar nas instituições psicanalíticas, não permitindo aos jovens analistas uma participação mais efetiva e uma permeabilidade ao que trazem de novo e contestador. Dar um espaço político aos mais jovens poderia contribuir para que não se tornem meros substitutos dos que estão no poder, mas que agreguem novas formas de relação no grupo.

5. Em sua opinião, temos uma grade curricular nos Institutos de formação que atende as demandas contemporâneas?

A psicanálise clássica (fundamentos freudianos e os autores pós-freudianos) cria a base para os novos desenvolvimentos e é importante preservá-la na transmissão da psicanálise.

A clínica atual exige que o analista trabalhe para além da neurose e do recalcado. Temos as não-neuroses, a clínica da descarga em ato e no corpo, o trabalho com os traumas narcísico-identitários e o desamparo, o não-representado, o cindido. Essa clínica necessita ser incluída nos seminários e discussões clínicas. Também incluiria os aportes sobre o transgeracional, o vincular e a abertura para que analistas que atendem adultos possam fazer seminários da área de infância e adolescência. Espaços para estudar a psicanálise à distância e o trabalho extra-muros são necessários.

Mas como lembra Freud no caso clínico do Pequeno Hans, todo o conhecimento junta vários retalhos e cada passo dado à frente deixa um resíduo não resolvido.

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